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Globalização e 
Experiência de Tempo

É consensual descrever a Modernidade como a época da história. Uma primeira questão a ser trabalhada é, portanto, que relação com o presente tornou possível uma historicidade aos homens modernos. Kant, em um texto agora já não tão obscuro dado as incessantes referências de Foucault, caracteriza o Iluminismo como a saída do estado de menoridade do qual os próprios homens seriam os responsáveis (6).  O decisivo, aqui, é o termo saída, pois indica que Kant apreende o presente na simultaneidade de uma experiência de determinação e da emergência de um possível: caracteriza-se por ser apenas a possibilidade de não mais (futuro) ser o que ele ainda (passado) é. A Modernidade é a época da história porque ela obrigou-se a pensar o acontecimento, uma certa experiência de tempo onde o passado e o futuro são momentos do próprio presente. Creio que os conceitos modernos de tempo e história, por diversos que fossem, tinham justamente como condição de possibilidade esta experiência do presente como ocasião de saída da determinação, como ocasião de realização do homem em sua verdade. Ou seja, o presente é a emergência de um possível; este, por sua vez, articula-se ao universal, à humanidade. Daí uma tensão própria à Modernidade: como o além dessa cultura singular é um além de si mesma, um mudar, e não o além, esta cultura articulará verdade e mudança, bem como será extremamente atenta à diversidade cultural.

Há mais. Quando o presente se caracteriza como emergência de um possível, sua singularidade é apreendida na distância com um passado recente. Os pensadores modernos tinham que se interrogar incessantemente sobre que diferença o hoje introduz em relação ao ontem. Na realidade, o passado tinha uma dupla função explicativa: devia explicar por que os homens são o que são e por que podem deixar de sê-lo, realizando a sua verdade no tempo. Era forçoso, assim, que os filósofos da história caracterizassem seu presente como o último. Marx define o capitalismo como a última forma de exploração do homem pelo homem (7). Nietzsche, por sua vez, afirma que o niilismo é a última doença da cultura Ocidental (8).  O presente é experimentado como o instante onde a história está prestes a realizar a promessa que desde o seu início a constituiu: descortina-se no horizonte o advento do comunismo ou a chegada do além-homem. A transformação que deslindará a história em sua verdade é, assim, meramente possível, mas seu sentido é determinável. A incerteza incide sobre a ocorrência da mudança, mas não sobre o seu sentido. Daí o convite incessante à mudar e o novo como valor, pois a mudança é necessária: ela nos libertará da determinação.

O sentimento do intelectual diante de seu presente, que podia ser auspicioso ou crítico, gerou os dois grandes gêneros de filosofia da história: o utópico e o trágico. Ou bem a história tinha a forma do progresso ou da decadência, da perda do originário, perda que quando excessiva permite a lembrança do homem verdadeiro. Duas formas diferentes de experimentar uma mesma angústia de contemporaneidade: ou bem o homem ainda não é contemporâneo da história que o faz ser, desconhecendo a promessa que porta em si, ou bem o homem não é contemporâneo da experiência a partir da qual ele é verdadeiramente, experiência que existiu na aurora do pensamento ocidental e que foi paulatinamente recalcada (9). Nas duas, porém, a forma de pensar se dá através de um jogo entre esquecimento e memória. Os homens ainda são determinados porque se esqueceram e  o pensamento do ser verdadeiro tem a forma da memória. E como a transformação é apenas possível e depende da memória do que foi esquecido, os agentes da mudança são os intelectuais que permitiriam aos homens a tomada de consciência de sua verdade, condição necessária de sua realização no futuro. Seu trabalho é mostrar aos homens como eles ainda são determinados, qual é a sua verdade que desconhecem e que ela tem a forma do possível, não cabendo, pois,  o temor do que virá; ao contrário, no futuro, os homens serão verdadeiramente.

A atitude dos pensadores modernos diante do seu presente pode ser sintetizada pelo conceito de espera, na medida em que aí se manifesta que o novo é valor e que se deseja a sua ocorrência. Claro, se o pensador é utópico, espera algo; se é trágico, sua atitude é melhor descrita como sendo uma pura espera, uma espera sem complemento de objeto, aquela que permite o eterno acolher do inesperado, do acaso.

Uma característica diferencial de nossa Atualidade que aparece imediatamente é o deslocamento do lugar de apreensão do novo. Trata-se agora da distância entre o presente e um futuro que está sendo aberto pela produção tecnológica. Também é de um possível que se fala, isto é, continuamos a nos pensar historicamente, a situar o passado e o futuro no interior do próprio presente. Contudo, apreende-se não a ocasião da liberdade, mas um dinamismo, o desencadear de uma força. Não é mais a distância entre o que podemos ser e o que ainda somos; agora é a distância estimada entre o que somos e o que seremos no futuro, dada a mudança tecnológica. A distinção entre a Modernidade e a Atualidade pode então ser redefinida: surgiu um novo conceito de novo ou, mais profundamente, a Atualidade experimenta um acontecimento que modifica, desde então, o que nos pode ser um acontecimento. Saímos de uma experiência de determinação para a experiência de abertura tecnológica. Para os indivíduos e os intelectuais, a mudança vem do exterior (o que explica a tão propalada crise de sua função). A mudança acontecerá, independente do que for pensado, pois o agente do novo agora é a vertiginosa mudança tecnológica que afeta, quer se queira ou não, o que somos. O futuro torna-se um horizonte que se abate velozmente sobre nós.

Nicholas Negroponte  pode servir de exemplo. Eis um trecho de A vida digital: "Isso tudo está mudando rapidamente. A movimentação da informação está em vias de se transformar na transferência instantânea e barata de dados eletrônicos movendo-se à velocidade da luz. (...) A mudança de átomos para bits é irrevogável e não há como detê-la. E por que agora? Porque essa mudança é também exponencial - o que ontem ainda era uma diferença pequena pode, de repente, acarretar conseqüências assombrosas amanhã. (...) A informática não tem mais nada a ver com computadores. Tem a ver com a vida das pessoas." (10)  Este modo de análise da introdução de uma tecnologia não acontece apenas com a informática e seus derivados, a internet e a realidade virtual; ocorre ainda quando se trata das novas tecnologias biomédicas, como a neurologia e a engenharia genética.

Em primeiro lugar, atrai a atenção esta experiência que temos hoje de aceleração das mudanças. Não é mais a constatação apenas do transitório, de que tudo o que é sólido desmancha-se no ar; trata-se da apreensão de um dinamismo que justamente nos caracteriza. Eis o que diz um filósofo norte-americano, Daniel Dennett, quando, em um esforço de síntese, esboça o que crê ter sido a história da vida nos últimos 4 bilhões de anos: "todos os três mídia - evolução genética, plasticidade fenotípica e evolução dos memes - contribuíram para o design da consciência humana, cada um por vez e a taxas crescentes de velocidade. Comparada à plasticidade fenotípica, que tem estado aí por milhões de anos, a evolução significativa dos memes é um fenômeno extremamente recente, tornando-se uma força poderosa nos últimos 100 mil anos e explodindo com o desenvolvimento da civilização há menos de 10 mil anos. É restrita a uma espécie, o homo sapiens, e podemos notar que ela agora nos trouxe à aurora de um quarto mídia, graças aos memes da ciência; a revisão direta dos sistemas nervosos individuais pela engenharia neurocientífica e a revisão do genoma pela engenharia genética." (11)  A distinção entre épocas está calcada nas diferentes taxas de velocidade. Além desta experiência de aceleração, há também neste trecho a concepção do presente como início, como aurora de algo que não sabemos o que será, mas que sabemos que vai nos transformar.

Esta simultaneidade de saber que vamos mudar mas que não sabemos no que iremos nos tornar se deve a duas características deste novo 'novo'. A primeira explica a indeterminação: ela se deve à própria amplitude da mudança. Nossa única certeza é que nossa humanidade será transformada, é que estamos deixando de ser os homens que somos. Eis o que nos diz Pierre Levy: "se apenas se tratasse da passagem de uma cultura à outra, teríamos ainda exemplos, referências históricas. Mas nós passamos de uma humanidade à outra, uma outra humanidade que não só permanece obscura, indeterminada, mas que nós nos recusamos a interrogar, que não aceitamos ainda visar."(12)

A  segunda característica explica a certeza da mudança. Ela é inevitável na medida em que é a apreensão de uma força no início de sua vigência. A incerteza não reside sobre a mudança, mas sobre seu conteúdo. Mais uma vez, o futuro torna-se no mínimo duplo e pode despertar o temor, pode gerar a angústia da catástrofe. Afinal, esta mudança inevitável é acompanhada pela sensação de externalidade. A ciência e a tecnologia proliferam os possíveis, proliferam aquilo que podemos ser antes mesmo que tenhamos sentido a necessidade de mudar. Somos surpreendidos. Continuamos a dizer que nada será como antes amanhã; contudo, este enunciado não manifesta mais um desejo, uma espera; manifesta, sim, a surpresa diante do quanto poderemos, quer queiramos ou não, tendo em vista a dinâmica do que estamos começando a poder. Pensemos nos animais transgênicos, nos clones, na velocidade de informação, etc.

 Quando o presente é a aurora de uma força que se desencadeia, muda a forma de pensar. Certamente que não pode mais ser a memória da verdade prometida do homem. Trata-se, sim, do reino da estratégia, do exercício de simulação onde extrapolamos as tendências que hoje vigoram com o desejo de que haja recursividade do antecipado sobre as tendências apreendidas. Tornamo-nos todos especuladores, onde especular significa jogar com a força através da simulação e, assim, quem sabe, abrir espaço para o projeto. Mas a especulação é a outra face da mudança na angústia de contemporaneidade. Ela ganha agora o contorno afetivo da urgência. É preciso pensar o que poderemos ser e o que queremos ser dado o que já estamos podendo, pois certamente não seremos mais o que somos. O atraso toma o lugar da espera. Se o presente é o início de uma transformação inaudita e inevitável que nos abre uma nova humanidade, humanidade que ainda não somos, e talvez nunca o sejamos, capazes de antecipar, doravante nós partiremos sempre, o que significa que estaremos sempre atrasados em relação ao que seremos. A história não acabou; ao contrário, ela nunca terá fim, no duplo sentido do termo. Pierre Levy apresenta duas metáforas para definir esta nova historicidade. A primeira é a de uma descida em corredeiras, onde não se pode parar - o que equivaleria a morrer, como se sabe; é possível apenas continuar descendo. A segunda imagem é a de um novo nomadismo: "Os primeiros nômades seguiam os rebanhos, os quais buscavam seus alimentos segundo as estações e as chuvas. Hoje, nomadizamos atrás do devir humano, um devir que nos atravessa e que nós fazemos. O humano tornou-se seu próprio clima, uma estação infinita e sem retorno. Horda e rebanho misturados, cada vez menos separáveis de nossos instrumentos e de um mundo estreitamente atado à nossa marcha, a cada dia nós desdobramos uma nova estepe."(13)  O interessante neste trecho é justamente a assunção de que o futuro antecipado não paralisa, mas conduz à manutenção da mudança.

 O crucial nesta nova historicidade é a simultaneidade entre a sensação de um futuro fechado, presente nas diversas posturas catastróficas diante do novo tecnológico, e a imensa abertura do que podemos ser. Por que não somos capazes de investir afetivamente no futuro quando ele está sendo desmesuradamente aberto quando multiplica-se espantosamente o que podemos ser? Questão ética e política que certamente remete à separação entre ciência e sociedade bem como à inevitabilidade da mudança. O que podemos ser aparece antes que tenhamos sentido a necessidade da mudança e sob a forma da obrigação. Antes de nos demorarmos nesta questão, é preciso um recuo para expor a diferença entre a Modernidade e a Atualidade no modo como os pensadores apresentam a experiência individual de tempo.


PRIMEIRA PARTE INÍCIO CONCLUSÃO

NOTAS

(6) I. Kant, “Réponse à une question: qu’est-ce que les Lumières?”, in Oeuvres Complètes, Paris: Gallimard, 1985, p. 207-215. Os comentários de Foucault sobre este texto de Kant foram decisivos na elaboração da hipótese aqui proposta de diferenciação entre Modernidade e Atualidade. Cf M. Foucault, Dits et écrits, t. IV, Paris: Gallimard, 1995, p. 562-578 e 679-688.

(7) Cf K. Marx, Para a crítica da economia política; São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 26.

(8) Cf F. Nietzsche, A genealogia da moral, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 13.

(9) Cf M. Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 319-359.

(10) N. Negroponte, A vida digital, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 10.

(11) D. Dennett, Consciousness explained, Boston: Little, Brown and Company, 1991, p. 208.

(12) P. Levy, L’intelligence collective, Paris: La Découverte, 1994, p. 11.

(13) P. Levy, Idem, p. 13.