Globalização
e
|
Há mais. Quando o presente se caracteriza como emergência de um possível, sua singularidade é apreendida na distância com um passado recente. Os pensadores modernos tinham que se interrogar incessantemente sobre que diferença o hoje introduz em relação ao ontem. Na realidade, o passado tinha uma dupla função explicativa: devia explicar por que os homens são o que são e por que podem deixar de sê-lo, realizando a sua verdade no tempo. Era forçoso, assim, que os filósofos da história caracterizassem seu presente como o último. Marx define o capitalismo como a última forma de exploração do homem pelo homem (7). Nietzsche, por sua vez, afirma que o niilismo é a última doença da cultura Ocidental (8). O presente é experimentado como o instante onde a história está prestes a realizar a promessa que desde o seu início a constituiu: descortina-se no horizonte o advento do comunismo ou a chegada do além-homem. A transformação que deslindará a história em sua verdade é, assim, meramente possível, mas seu sentido é determinável. A incerteza incide sobre a ocorrência da mudança, mas não sobre o seu sentido. Daí o convite incessante à mudar e o novo como valor, pois a mudança é necessária: ela nos libertará da determinação.
O sentimento do intelectual diante de seu presente, que podia ser auspicioso ou crítico, gerou os dois grandes gêneros de filosofia da história: o utópico e o trágico. Ou bem a história tinha a forma do progresso ou da decadência, da perda do originário, perda que quando excessiva permite a lembrança do homem verdadeiro. Duas formas diferentes de experimentar uma mesma angústia de contemporaneidade: ou bem o homem ainda não é contemporâneo da história que o faz ser, desconhecendo a promessa que porta em si, ou bem o homem não é contemporâneo da experiência a partir da qual ele é verdadeiramente, experiência que existiu na aurora do pensamento ocidental e que foi paulatinamente recalcada (9). Nas duas, porém, a forma de pensar se dá através de um jogo entre esquecimento e memória. Os homens ainda são determinados porque se esqueceram e o pensamento do ser verdadeiro tem a forma da memória. E como a transformação é apenas possível e depende da memória do que foi esquecido, os agentes da mudança são os intelectuais que permitiriam aos homens a tomada de consciência de sua verdade, condição necessária de sua realização no futuro. Seu trabalho é mostrar aos homens como eles ainda são determinados, qual é a sua verdade que desconhecem e que ela tem a forma do possível, não cabendo, pois, o temor do que virá; ao contrário, no futuro, os homens serão verdadeiramente.
A atitude dos pensadores modernos diante do seu presente pode ser sintetizada pelo conceito de espera, na medida em que aí se manifesta que o novo é valor e que se deseja a sua ocorrência. Claro, se o pensador é utópico, espera algo; se é trágico, sua atitude é melhor descrita como sendo uma pura espera, uma espera sem complemento de objeto, aquela que permite o eterno acolher do inesperado, do acaso.
Uma característica diferencial de nossa Atualidade que aparece imediatamente é o deslocamento do lugar de apreensão do novo. Trata-se agora da distância entre o presente e um futuro que está sendo aberto pela produção tecnológica. Também é de um possível que se fala, isto é, continuamos a nos pensar historicamente, a situar o passado e o futuro no interior do próprio presente. Contudo, apreende-se não a ocasião da liberdade, mas um dinamismo, o desencadear de uma força. Não é mais a distância entre o que podemos ser e o que ainda somos; agora é a distância estimada entre o que somos e o que seremos no futuro, dada a mudança tecnológica. A distinção entre a Modernidade e a Atualidade pode então ser redefinida: surgiu um novo conceito de novo ou, mais profundamente, a Atualidade experimenta um acontecimento que modifica, desde então, o que nos pode ser um acontecimento. Saímos de uma experiência de determinação para a experiência de abertura tecnológica. Para os indivíduos e os intelectuais, a mudança vem do exterior (o que explica a tão propalada crise de sua função). A mudança acontecerá, independente do que for pensado, pois o agente do novo agora é a vertiginosa mudança tecnológica que afeta, quer se queira ou não, o que somos. O futuro torna-se um horizonte que se abate velozmente sobre nós.
Nicholas Negroponte pode servir de exemplo. Eis um trecho de A vida digital: "Isso tudo está mudando rapidamente. A movimentação da informação está em vias de se transformar na transferência instantânea e barata de dados eletrônicos movendo-se à velocidade da luz. (...) A mudança de átomos para bits é irrevogável e não há como detê-la. E por que agora? Porque essa mudança é também exponencial - o que ontem ainda era uma diferença pequena pode, de repente, acarretar conseqüências assombrosas amanhã. (...) A informática não tem mais nada a ver com computadores. Tem a ver com a vida das pessoas." (10) Este modo de análise da introdução de uma tecnologia não acontece apenas com a informática e seus derivados, a internet e a realidade virtual; ocorre ainda quando se trata das novas tecnologias biomédicas, como a neurologia e a engenharia genética.
Em primeiro lugar, atrai a atenção esta experiência que temos hoje de aceleração das mudanças. Não é mais a constatação apenas do transitório, de que tudo o que é sólido desmancha-se no ar; trata-se da apreensão de um dinamismo que justamente nos caracteriza. Eis o que diz um filósofo norte-americano, Daniel Dennett, quando, em um esforço de síntese, esboça o que crê ter sido a história da vida nos últimos 4 bilhões de anos: "todos os três mídia - evolução genética, plasticidade fenotípica e evolução dos memes - contribuíram para o design da consciência humana, cada um por vez e a taxas crescentes de velocidade. Comparada à plasticidade fenotípica, que tem estado aí por milhões de anos, a evolução significativa dos memes é um fenômeno extremamente recente, tornando-se uma força poderosa nos últimos 100 mil anos e explodindo com o desenvolvimento da civilização há menos de 10 mil anos. É restrita a uma espécie, o homo sapiens, e podemos notar que ela agora nos trouxe à aurora de um quarto mídia, graças aos memes da ciência; a revisão direta dos sistemas nervosos individuais pela engenharia neurocientífica e a revisão do genoma pela engenharia genética." (11) A distinção entre épocas está calcada nas diferentes taxas de velocidade. Além desta experiência de aceleração, há também neste trecho a concepção do presente como início, como aurora de algo que não sabemos o que será, mas que sabemos que vai nos transformar.
Esta simultaneidade de saber que vamos mudar mas que não sabemos no que iremos nos tornar se deve a duas características deste novo 'novo'. A primeira explica a indeterminação: ela se deve à própria amplitude da mudança. Nossa única certeza é que nossa humanidade será transformada, é que estamos deixando de ser os homens que somos. Eis o que nos diz Pierre Levy: "se apenas se tratasse da passagem de uma cultura à outra, teríamos ainda exemplos, referências históricas. Mas nós passamos de uma humanidade à outra, uma outra humanidade que não só permanece obscura, indeterminada, mas que nós nos recusamos a interrogar, que não aceitamos ainda visar."(12)
A segunda característica explica a certeza da mudança. Ela é inevitável na medida em que é a apreensão de uma força no início de sua vigência. A incerteza não reside sobre a mudança, mas sobre seu conteúdo. Mais uma vez, o futuro torna-se no mínimo duplo e pode despertar o temor, pode gerar a angústia da catástrofe. Afinal, esta mudança inevitável é acompanhada pela sensação de externalidade. A ciência e a tecnologia proliferam os possíveis, proliferam aquilo que podemos ser antes mesmo que tenhamos sentido a necessidade de mudar. Somos surpreendidos. Continuamos a dizer que nada será como antes amanhã; contudo, este enunciado não manifesta mais um desejo, uma espera; manifesta, sim, a surpresa diante do quanto poderemos, quer queiramos ou não, tendo em vista a dinâmica do que estamos começando a poder. Pensemos nos animais transgênicos, nos clones, na velocidade de informação, etc.
Quando o presente é a aurora de uma força que se desencadeia, muda a forma de pensar. Certamente que não pode mais ser a memória da verdade prometida do homem. Trata-se, sim, do reino da estratégia, do exercício de simulação onde extrapolamos as tendências que hoje vigoram com o desejo de que haja recursividade do antecipado sobre as tendências apreendidas. Tornamo-nos todos especuladores, onde especular significa jogar com a força através da simulação e, assim, quem sabe, abrir espaço para o projeto. Mas a especulação é a outra face da mudança na angústia de contemporaneidade. Ela ganha agora o contorno afetivo da urgência. É preciso pensar o que poderemos ser e o que queremos ser dado o que já estamos podendo, pois certamente não seremos mais o que somos. O atraso toma o lugar da espera. Se o presente é o início de uma transformação inaudita e inevitável que nos abre uma nova humanidade, humanidade que ainda não somos, e talvez nunca o sejamos, capazes de antecipar, doravante nós partiremos sempre, o que significa que estaremos sempre atrasados em relação ao que seremos. A história não acabou; ao contrário, ela nunca terá fim, no duplo sentido do termo. Pierre Levy apresenta duas metáforas para definir esta nova historicidade. A primeira é a de uma descida em corredeiras, onde não se pode parar - o que equivaleria a morrer, como se sabe; é possível apenas continuar descendo. A segunda imagem é a de um novo nomadismo: "Os primeiros nômades seguiam os rebanhos, os quais buscavam seus alimentos segundo as estações e as chuvas. Hoje, nomadizamos atrás do devir humano, um devir que nos atravessa e que nós fazemos. O humano tornou-se seu próprio clima, uma estação infinita e sem retorno. Horda e rebanho misturados, cada vez menos separáveis de nossos instrumentos e de um mundo estreitamente atado à nossa marcha, a cada dia nós desdobramos uma nova estepe."(13) O interessante neste trecho é justamente a assunção de que o futuro antecipado não paralisa, mas conduz à manutenção da mudança.
O crucial nesta nova historicidade é a simultaneidade entre a sensação de um futuro fechado, presente nas diversas posturas catastróficas diante do novo tecnológico, e a imensa abertura do que podemos ser. Por que não somos capazes de investir afetivamente no futuro quando ele está sendo desmesuradamente aberto quando multiplica-se espantosamente o que podemos ser? Questão ética e política que certamente remete à separação entre ciência e sociedade bem como à inevitabilidade da mudança. O que podemos ser aparece antes que tenhamos sentido a necessidade da mudança e sob a forma da obrigação. Antes de nos demorarmos nesta questão, é preciso um recuo para expor a diferença entre a Modernidade e a Atualidade no modo como os pensadores apresentam a experiência individual de tempo.
PRIMEIRA PARTE | INÍCIO | CONCLUSÃO |
(6) I. Kant, “Réponse à une question: qu’est-ce que les Lumières?”, in Oeuvres Complètes, Paris: Gallimard, 1985, p. 207-215. Os comentários de Foucault sobre este texto de Kant foram decisivos na elaboração da hipótese aqui proposta de diferenciação entre Modernidade e Atualidade. Cf M. Foucault, Dits et écrits, t. IV, Paris: Gallimard, 1995, p. 562-578 e 679-688.
(7) Cf K. Marx, Para a crítica da economia política; São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 26.
(8) Cf F. Nietzsche, A genealogia da moral, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 13.
(9) Cf M. Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes, 1981, p. 319-359.
(10) N. Negroponte, A vida digital, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 10.
(11) D. Dennett, Consciousness explained, Boston: Little, Brown and Company, 1991, p. 208.
(12) P. Levy, L’intelligence collective, Paris: La Découverte, 1994, p. 11.
(13) P. Levy, Idem, p. 13.