Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

Globalização e 
Experiência de Tempo

 Um poema de Voltaire, Le pauvre diable,  sintetiza a forma moderna de conceber o nexo entre concepção de indivíduo e experiência subjetiva de tempo. Escreve Voltaire: "Que partido tomar? Onde estou, e quem devo ser? / Nascido desprovido, na massa lançado,/ Germe nascente pelo vento arrebatado,/ Sobre qual solo posso esperar crescer?/ Como encontrar uma profissão, um emprego?/ Sobre meu destino, de graça, instrua-me./ ? É preciso instruir e sondar a si mesmo./ Interrogar-se, não crer senão em si,/ Em seu instinto, saber bem o que se ama:/ E, sem procurar conselhos supérfluos,/ Escolher a profissão que mais lhe agrada." (14)

 O indivíduo, este germe que busca um solo para florescer,  é aí concebido como um valor possível, como uma verdade prometida a ser realizada no tempo. Seu único dever é ser verdadeiramente ou, para retomar uma expressão célebre proposta por Goethe e retomada por Nietzsche, seu dever é tornar-se o que se é. Esta expressão é interessante, pois implica tanto que o indivíduo ainda não é o que ele é, quanto que ele ainda não sabe ("onde estou e quem devo ser") quem ele é. Esta verdade prometida ainda está para ser descoberta, descoberta que é o momento crucial da libertação. O paralelo com a atitude moderna dos intelectuais diante do novo é claro.

 Desponta neste poema duas características que diversos pensadores ressaltam na cultura moderna. Em primeiro lugar, a indeterminação do papel e a possibilidade por ela aberta de um conflito entre indivíduo e sociedade. Este conflito é privilegiado na explicação da alienação; o indivíduo ainda não é o que é porque não sabe quem é verdadeiramente e este não saber se deve à pressões sociais que exigem que ele seja outra coisa do que ele é. Alia-se aqui os temas da crítica social e da realização individual. Dois focos desta alienação tiveram destaque na Modernidade. Um é a crítica do trabalho alienante, mecânico. Além de o indivíduo estar separado do fruto de seu trabalho, estaria também distante da possibilidade de realizar-se pelo e no trabalho. Um segundo foco é a importância da temática do duplo e de seu exemplo privilegiado, a neurose, o sofrimento psíquico articulado à identidade. Na sua explicação, recorria-se ao jogo entre aquilo que o indivíduo crê dever ser, aquilo que ele pensa ser, e aquilo que ele é; jogo entre as normas sociais e o desejo. Sua libertação, que aqui tem a forma de alívio dos sofrimentos psíquicos, requer justamente a descoberta de sua verdade na capacidade de repensar sua adesão às normas sociais.

 Esta forma de pensar a inserção do indivíduo no tempo pode ser vista como uma certa forma de pensar o poder da ação humana. Tradicionalmente, este poder traduz-se na separação entre o que depende ou não de nós. A ação, por sua vez, é pensada através da distinção entre alvo e obstáculo, o decisivo sendo mostrar que a ultrapassagem do obstáculo está em nosso poder. A esta divisão, corresponde aquela entre presente e futuro, o obstáculo sendo atual e o alvo sendo o que se espera. Na Modernidade, portanto, o alvo é a realização do potencial contido em cada indivíduo e o obstáculo é aquilo que ele pensa sobre si mesmo. Percebe-se por que o pensamento moderno precisou pôr em questão a moral. Privilegiando o indivíduo, concebendo-o como uma potência e definindo como obstáculo suas crenças sobre si mesmo, era necessário que a moralidade fosse posta em questão e até mesmo pensar que a própria idéia de sujeito já era efeito da moral. Não há mais a ação correta a ser realizada; há, sim, a crítica incessante sobre o quanto as regras sociais não estariam impedindo a libertação dos indivíduos e da própria sociedade. Não é de se espantar que Nietzsche, por exemplo, tenha afirmado que a consciência é o órgão do rebanho, aquilo que em nós nos conduz à adesão às normas sociais. (15)

 A experiência típica de tempo a partir do qual se pensará a liberdade é a repetição. Inicialmente, por ser concebida como uma forma de automatismo. E também porque ela permite articular à relação entre indivíduo e sociedade o tema do peso do passado sobre o presente que impede o indivíduo de se abrir ao novo e a si mesmo como novo. Diz Freud acerca do peso do que foi recalcado sobre as ações do indivíduo: "Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o sem, naturalmente, saber que o está repetindo."(16)  O neurótico, aquele que angustia-se com a identidade, repete porque recalca e recalca devido à força das normas sociais. Esta experiência da repetição também é tematizada por Nietzsche através do conceito de ressentimento, esta forma de memória que gera a moral por recusar incessantemente a diferença, seja ela os outros ou o novo, e a si mesmo como diferença. (17) Ser plástico é, neste caso, condição e efeito da liberdade.

 Podemos nos aproximar do modo com que a Atualidade está começando a articular concepção de sujeito e experiência de tempo através da aplicação corriqueira do conceito de reciclagem à relação entre indivíduo e trabalho. O interessante não é apenas o fato de se passar a associar o indivíduo a um resto, a um lixo; é também o fato de o conflito entre indivíduo e sociedade ter abandonado a esfera da moral e da sexualidade e passado para o âmbito da velocidade da mudança social produzida pela tecnologia. Duas conseqüências são imediatas. Uma é o fim da separação entre tempo de formação e tempo adulto; a reciclagem de profissionais nos obriga a conceber uma formação permanente. Contudo, ao invés de ser a realização do sonho moderno de um aprimoramento continuado do ser humano, trata-se do dever de aprender para não ser excluído. A outra é que a plasticidade torna-se dever: mude, modifique seus conhecimentos e ações, senão... Alguns autores já trabalham com outras derivações, como a da diferença social ser cada vez menos uma questão de renda ou de gênero ou de escolha sexual e cada vez mais uma questão de idade. (18) Afinal, ser jovem é ser plástico.

 Creio que o está ocorrendo uma mudança profunda no modo como a ação é concebida. Não há mais um limite no presente e um alvo futuro; o limite hoje de uma dada ação é a sua conseqüência. Sabemos que habitaremos um mundo que depende do que estamos fazendo agora. Não vivemos mais na necessidade do mundo, sendo obrigados a aceitar, por exemplo, que tomates envelheçam rapidamente, que existam pragas que atacam a soja, que o leite dos animais não tenham proteínas que curem certas doenças, que a reprodução implique obrigatoriamente o ato sexual, que ela precise de seres do sexo masculino, etc. Contudo, toda ação hoje visando um certo efeito local (por exemplo, o prazer ao se comer carnes vermelhas) traz consigo uma conseqüência arriscada global (no caso, um enfarte). O futuro depende daquilo que o presente espera que o futuro seja, na medida em que é essa expectativa que pode funcionar como limite no presente. Um novo feedback entre presente e futuro: tornamo-nos filhos de nossos filhos, na medida em que os efeitos de nossas ações tornam-se condições de qualquer ação que viermos a empreender. (19) Nossas ações dependem de nossas expectativas que são conformadas pelas informações de que dispomos. O obstáculo perde sua presença atual, desliga-se daquilo que o sujeito pensa ser e torna-se virtual.

Estranho mundo, quando o comparamos com  a idéia de utopia moderna: ao invés de ser o lugar onde não mais haveria limitações, o futuro torna-se o que limita. No caso da clonagem dos seres humanos, o problema deixou de ser o nosso poder e tornou-se aquele do 'direito' em realizar tal ação, direito que, além das tradicionais referências religiosas - "o homem está brincando de ser Deus" -, é pensado segundo as conseqüências. O modo como as práticas sexuais são pensadas desde o aparecimento da AIDS é também exemplo. Cada vez menos importa se o ato é praticado ou não segundo sua forma canônica, normal; aliás, isso só é relevante na medida em que aumenta ou diminui o risco. Além do prazer local, toda ação pode ter um efeito global perigoso para a sobrevivência e é este efeito que deve ser considerado.

 Se a velocidade tecnológica e a conseqüência estão cada vez mais substituindo a identidade no jogo da problematização ética, a experiência típica de tempo também não pode ser mais a repetição. Afinal, o decisivo não é mais o peso do passado e, sim, o do futuro sobre o presente. Esta experiência é aquela onde se exige uma decisão rápida em circunstâncias de risco, onde o que conta, portanto, é a sobrevivência e o que se deve constantemente levar em consideração é a conseqüência de cada ato.

Dois exemplos. Um é Antônio Damásio, neurólogo português radicado nos Estados Unidos e cujo trabalho teve intensa repercussão entre especialistas e na grande imprensa. Quando procura concretizar seu modelo de mente, onde as emoções de risco conduzem à 'boa' escolha - tanto que aponta drogados, criminoso e doentes com lesão no córtex pré-frontal (o caso clínico sobre o qual constrói sua teoria) como míopes para o futuro (20) - escolhe como exemplos do cotidiano duas situações: a de um corretor de bolsa ou a de um piloto diante de uma pane de avião.   O outro exemplo é Daniel Dennett, que constrói um modelo de consciência a partir da inexistência de um centro no cérebro. (21) Diz Dennett:  "A tarefa do cérebro é guiar o corpo que ele controla através de um mundo de condições mutantes e de súbitos perigos; portanto, ele deve reunir informação deste mundo e usá-la rapidamente para produzir futuro - extrair antecipações a fim de ficar um passo à frente do desastre."(22)  Compara então a situação quotidiana de qualquer cérebro humano à 'sala de situação' no Pentágono, tendo que rastrear a trajetória de um míssil atômico dentro de uma janela temporal onde alguma resposta é possível. (23)

Creio que o desafio teórico aqui exposto é o de questionar a supremacia absoluta do risco na relação com o futuro, supremacia transparente na concentração sobre os temas da catástrofe e da sobrevivência. Quando conjugada à exterioridade, velocidade e inevitabilidade da mudança, a supremacia nos faz experimentar a sensação de um futuro fechado, sensação paradoxal tendo em vista que a tecnologia hoje prolifera nossos possíveis. Difícil questionamento, contudo, pois além da sensação de fechamento, o futuro é, ao mesmo tempo, o que funda limites às nossas ações no presente.
Dificuldade tanto maior quando o que dimensiona a mudança é a extrapolação de uma força e não uma transformação passada. O costumeiro, neste caso, é dimensionar a mudança a partir de um desejo de pertinência ao que hoje existe. E nada é tão potente em gerar temor acerca do futuro que o desejo de permanência.

Há, porém, uma oportunidade a ser explorada neste nosso mundo onde a antecipação é o que limita. O que será depende do que desejamos. Novo jogo entre limite e desejo: nem se trata do desejo de ultrapassar limites, nem do limite constituir o desejo. Trata-se agora de desejos necessariamente mutáveis constituindo e desfazendo limites. Oportunidade, portanto, de reativar o projeto, ou melhor, de constituir em permanência uma imaginação utópica, suficientemente lábil para não querer conformar o futuro ao previsto, mas potente o suficiente para evitar que os limites produzidos pelo desejo não sejam o mero efeito do temor de desaparição do que hoje existe.


PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE INÍCIO

NOTAS

(14) Voltaire, Oeuvres, Paris: Gallimard, 1982.

(15) Cf F. Nietzsche, Le gai savoir, Paris: Gallimard, 1982, p. 253.

(16) S. Freud, “Recordar, repetir e elaborar”, in Obras Completas, op. cit.,  v. XII, p. 196.

(17) Cf. F. Nietzsche, A genealogia da moral, p. 19-56.

(18) Cf., entre outros, N. Negroponte, op. cit., p. 11.

(19) Cf. M. Serres, Éclaircissements, Paris: François Bourin, 1992, p. 250.

(20) Cf. ª Damásio, O erro de Descartes, Lisboa: Publicações Europa-América, 1995, p. 226-227.

(21) Idem, p. 205-206.

(22) D. Dennett, op. cit., p. 144.

(23) Idem, p. 151.