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( CONTINUAÇÃO 3 ) |
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FLORBELA VISTA POR NUNO JÚDICE Contudo, e porque nos interessa realçar este aspecto desde logo, sendo a forma fechada (dez sílabas serão sempre dez sílabas métricas), Nuno Júdice acrescenta, tal como nós faremos quando chegar a altura, que essa revitalização do verso em decassílabo é obtida através da exploração do campo temático por um lado e pela introdução de uma subtil forma de diálogo íntimo no corpo do poema (o que já entra dentro do campo estético do poema) através da introdução de um eu dialogante. "(…)"Como o consegue?! (a revitalização). É sobretudo no plano temático que a novidade se impõe. E, antes de mais – diz Júdice – pela criação de uma figura dupla – " Sonho que sou a Poetisa eleita" (in Vaidade – Livro de Mágoas) (…) Essa figura, sem atingir o estatuto do heterónimo pessoano, inscreve-se no entanto dentro do mesmo espaço fenomenológico, ou seja, reflecte a crise do sujeito – e da sinceridade poética – que obriga à constatação, perfeitamente moderna, de que a única forma que o Poeta tem de conseguir afirmar a sua subjectividade é anular o seu Eu e projectar-se num Outro". Aqui interessa sublinhar dois pontos no que se refere às observações de Nuno Júdice: este autor faz a ligação entre o conteúdo da poesia de Florbela e a forma (enriquecida) dentro do verso / poema. Ora, é nosso entender, que o campo temático nada tem a ver com a estética interior do poema de forma a determinar através de uma conjunção reflexa a avaliação dessa mesma estética. Qualquer que seja o campo temático que se enquadre e que se ajuste mantendo-se a forma como plástica do belo o enriquecimento existe… Ainda, e por outro lado, não existe qualquer anulação do Eu Florbeliano através da introdução do Outro (Florbeliano). E importa esclarecer este aspecto porquanto a anulação / aniquilação hegeliana do ser enquanto ser está fora de causa (aqui trata-se do ser do eu, ou seja da substância do eu) e qualquer conceito de anulação só pode entrar no campo defendido por W. Dilthey em que a anulação do eu implica a sua entrega perante a predominância do outro ou dos outros como ser antropológico ou ser inserido num processo que já não é do eu em si mas do outro em si. Confusão esta que parece ser partilhada por alguns autores que sobre Florbela têm escrito também como veremos mais à frente. Uma coisa é, e será sempre, o eu e o outro enquanto outro de mim e outra coisa totalmente distinta será o outro enquanto outro, que pelo facto de ser originalmente de mim e continuar a ser cada vez mais remotamente se afasta do eu inicial ou do eu de partida passando a conter já não o eu substante mas sim as replicações sucessivas e de qualidades diferentes do eu dentro do outro de mim. O eu e o Outro de mim (de Florbela, neste caso) são perfeitamente compatíveis como entidades distintas sem subsunção de um pelo outro, o que aliás se pode desde logo ver no poema analisado por Nuno Júdice (Vaidade). O Eu Florbeliano, sem qualquer mediação de exterioridade emerge no verso final do soneto:" Acordo do meu sonho…E não sou nada!..." E quando se diz, em remate ( chave ), "não sou nada", está-se a dizer que não sou nada disso, ou seja, que não é a poetiza que sonha ser ou que vê em sonhos. Não se trata da afirmação de um nada absoluto ou transcendente (como muitos autores têm defendido) mas sim de uma "nada" muito objectivo e contextualizado ao longo de todo o poema. Não nos parece que este Eu não seja o Eu fundante de Florbela que permanece aliás ao longo de toda a sua poética. Se de alguma coisa mais se pode criticar Florbela será pelo facto de não ter saído suficientemente de si, breve, de ter rodado à volta de si ( do seu eu ) e é por isso mesmo que se fala de egotismo em Florbela, culto ou exploração do eu. Mas vejamos o poema em que Nuno Júdice se baseia… "Vaidade Florbela Espanca
Sonho que sou a poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho... E não sou nada!... (in Florbela - Livro de Mágoas)." Quanto à possibilidade de o Outro Florbeliano ser o projecto conscientemente sonhado ou expressamente admitido o problema coloca-se da mesma maneira, ou seja, na mesma relação de complementaridade fundida e nunca de oposição. Compreende-se a dificuldade de alguns autores em admitirem a possibilidade de duas entidades se seguirem uma à outra sem que isso implique substituição ou diferenciação de uma pela outra, abrindo desta forma caminho à heteronomia pessoana ainda tão mal digerida pelo ideário nacional, e ao qual a entrada no "fingimento" não é alheia. Por esta lógica, como uma pessoa não pode ser duas pessoas, uma delas não é a pessoa… Procura-se assim, fazer do poeta um fingidor, por excelência, é trazê-lo dos domínios da sua vontade de transcendência (esta de escola) e colocá-lo na mera posição de "ficcionista". Ora Florbela não entende a poesia assim (pelo menos a sua poesia), vive-a com muita seriedade e convicção e utiliza-a como bálsamo psicológico e terapêutico. Como diz Jorge de Sena no seu ensaio (corajoso para a época) de 1946 poderá colocar-se em Florbela o problema da mentira (com o qual não estamos igualmente de acordo) mas não o problema do fingimento. Sobre esta questão da subsunção de eu no outro de mim e dos limiares difusos para a heteronomia, existe abundante literatura que é importante referir até porque a questão se encontra na ordem do dia nestes momentos de massificação informativa através deste meio que estamos a utilizar presentemente: a Net e as novas tecnologias em geral. O trabalho secular de Boécio, que trazemos aqui como ilustração, esclarece, em termos de valor argumentativo, um aspecto que tem andado algo mal esclarecido. "(…)Boécio- Como a Trindade é um Deus e não três deuses III- Assim, Deus não difere de Deus a título algum, pois não há diversidade de sujeitos por diferenças acidentais ou substanciais. Onde, pois, não há diferença, não haverá pluralidade alguma, e daí tampouco número, mas somente unidade. E quando dizemos três vezes Deus e dizemos Pai, Filho e Espírito Santo, estas três unidades não fazem pluralidade numérica naquilo que elas mesmas são, se consideramos a própria realidade numerada e não o modo pelo qual numeramos. Neste caso, a repetição de unidades produz pluralidade numérica; quando, porém, se trata da consideração da realidade numerada, a repetição da unidade e o uso plural não produzem de modo algum diferença numérica nas realidades. Pois há dois tipos de números: um, pelo qual numeramos; outro, que consiste nas coisas numeráveis. Assim, dizemos um para a coisa real; enquanto unidade designa aquilo pelo que dizemos que algo é um. Assim também dois pode referir-se à realidade – como, por exemplo, homens ou pedras –, mas dualidade não: dualidade refere-se somente àquilo por que se constituem dois: homens ou pedras. E assim também para os outros números. Portanto, no caso do número pelo qual numeramos, a repetição da unidade faz pluralidade; nas coisas, porém, a repetição de unidades não produz número, como por exemplo se da mesma e única coisa eu dissesse: "uma espada, um gládio, uma lâmina". Podemos referir-nos a essa realidade com um único vocábulo, "espada", e a repetição de unidades (palavras) não é uma numeração: se dizemos "espada, gládio, lâmina" é uma reiteração e não uma enumeração de diversos; do mesmo modo, quando repito: "sol, sol, sol" não se trata de três sóis, mas de um só.(…)" Por isso, (e os Antigos ainda ensinam bastante) o facto de se dizer, por exemplo, Florbela e Florbela Espanca, não quer dizer que estejamos a referir duas pessoas ou duas entidades distintas. O texto que se segue, em espanhol, comunga, ainda que de forma mais geral com aquilo que defendemos atrás, ou seja, comunga da coexistência do Eu e do Outro sem que exista subsunção senão temporal (e entendamos que quer o tempo quer o espaço não fazem cesura: são entidades não substanciais, que existirão sempre e em qualquer caso qualquer que seja o problema apresentado). "(…)En las identidades y en las alteridades, participan "la percepción individual del tiempo" y su relación con el espacio" (Marc Augé). Visión que se acerca a la conceptualización cronotopica de Bajtin. Sin embargo ese esquema relativamente lineal se puede complicar si se ingresa a indagar la construcción actual de la identidad y la alteridad. Siguiendo el pensamiento deleuziano el yo puede ser visto como otro, como una alteridad que se interioriza en la identidad. Esta visión esquizoide se relaciona con el tiempo como límite del pensamiento, "que obliga al pensamiento a proyectarse en el más allá ideal de las singularidades". La alteridad del Yo, lo coloca fuera del sí por el tiempo, "el 'tiempo' es el Otro de todo pensamiento, de todo Yo, la 'forma pura y vacía'" en palabras de Pierre Vertraeten. Para este autor: "La comprensión del Yo como Otro en Deleuze, esa elevación al campo problemático, efracción de las ideas inconscientes en la fisura del Yo, robo del pensamiento por el inconsciente, pasa por una etapa transitoria, aparentemente más tradicional, a saber, la de la relación con Otro: Yo es Otro porque es hecho otro por los otros, y recíprocamente. Pero la interpretación rectificada de esta primera etapa no es más que una mediación provisional: la plataforma para una nueva superación, hacia lo completamente otro del Otro otra vez". (Ver Nota logo abaixo ) Como no es posible encontrar una identidad absoluta, tampoco es factible hallar una alteridad sustancial y estable, sino que 'el alter' se disemina en otros. Los 'otros' pueden ser: étnicos y culturales; sociales e interiores. (…)" "In La compleja construcción contemporánea de la
identidad: habitar 'el entre'- Nota: Entendemos ainda útil trazer aqui um extracto de Hegel na sua Fenomenologia do Espírito: "(&119)- 2)- A diferença em si é a diferença essencial, o positivo e o negativo, de maneira que o positivo é a referência a si idêntica, de tal modo que não é o negativo, e este é de tal modo um diverso para si que não é o positivo. Visto que cada um é para si enquanto não é o outro, cada um aparece no outro e só é enquanto é o outro. (…)" Pode parecer confuso mas não o é assim tanto: cada um é para si enquanto não é o outro e mesmo quando aparece (se representa) no outro só é o outro enquanto dura essa representação, o que nos afasta da conclusão acima baseada em Deleuze mas apenas porque esta refere o processo já na sua fase seguinte, ou seja, quando o outro de mim se desmultiplica em vários outros de mim segundo as minhas representações em campos diferentes ou diferenciados. Ora em Florbela (na sua poética) estamos sempre no campo da interioridade e da intimidade do eu e a única coisa que aparece é o outro de mim representado em mim. O que nos preocupa, neste momento, não é a existência temporal ou temporária de um Outro que é um Eu interiorizado de forma distinta, mas sim as implicações que a aceitação de uma subsunção poderia trazer para uma análise correcta da poética e da personalidade de Florbela Espanca. O Outro pode ser Outro, no sentido com que termina este texto de Victor Silva, e o refere Nuno Júdice se de alguma forma se "emancipar" do Eu e essa emancipação liga-se a uma subsunção no mesmo sentido que Hegel (e depois Marx) referem na sua dialéctica do senhor e do escravo que é um processo histórico (posterior ao fecho da subjectividade e interioridade) e não intimista, como se entenderá. Tal subsunção leva à desidentificação e coloca o indivíduo nos braços da sociedade integrando-o como ser social emergindo num todo igualmente geral. Não é esse o caso de Florbela Espanca (nem creio que seja o caso de muita gente no plano da sua substancialidade identificativa) que se mantém ela mesma e que não "joga" em planos desidentificativos. O facto de ela mesma repetir quase até à exaustão que não sabe quem é elimina desde logo qualquer hipótese de desidentificação. Não se pode perder ( desidentificar) aquilo que se não tem ( se não identifica).Aliás toda a sua poesia e prosa são constituídas por manifestações do seu Eu…o percurso seguido por Nuno Júdice, como aliás aquele que iremos ver mais abaixo quer em Rita Maria de Abreu Maia quer em Del Farra é extremamente perigoso porque inadaptado. O problema do eu e do outro só se coloca e só se desenvolve aqui porque reparámos nesta conceptualização de Nuno Júdice e porque julgamos importante realçar este aspecto. Não se trata, conforme já dissemos acima, em Florbela Espanca, da "produção" de uma alteridade que ficciona, qual Fernando Pessoa e a sua heteronomia, jogando vários papéis através de vários personagens, com raiz substancial singular. O que Florbela faz é um diálogo íntimo entre a mesma personagem que é ela mesma, concedendo uma liberdade psíquica ao outro de si que ela não consegue (ou não quer) exprimir através do seu eu substante. As razões que a levam a isso (e que resultam de uma forma bastante rica na sua poética) estão relacionadas com a complexidade mental da autora e nunca como um mero truque de retórica (que aliás Júdice não refere) destinada a exteriorizar a sua poética mantendo-a contudo no seu campo intimista. O outro de si não resulta em Florbela da confrontação / comparação com o Outro em abstracto, mas resulta sim de um processo interiorizado, no qual o Outro comparativo está sem dúvida remotamente presente (pudemos dizer que serve de modelo ou é intuição), mas que sublima a fase da necessária confrontação / comparação para se produzir e replicar dentro de si mesmo. Na mesma direcção de pensamento, Maria Luísa Leal, em comunicação apresentada na Universidade de Évora, por ocasião do centenário de nascimento de Florbela, 1994, discutindo a exclusão ou a inserção do discurso poético florbeliano nos cânones literários, revela: "(...) estou a pensar num ensaio de Nuno Júdice, em que o autor afirma a novidade da criação, por Florbela Espanca, de uma figura dupla que, sem atingir o estatuto do heterónimo pessoano, se inscreve no entanto dentro do mesmo espaço fenomenológico, ou seja, reflecte a crise do Sujeito – e da sinceridade poética – que obriga à constatação, perfeitamente moderna, de que a única forma que o Poeta tem de conseguir afirmar a sua subjectividade é anular o seu Eu e projectá-lo num Outro (o que Mário de Sá-Carneiro, com mais clareza do que Pessoa, já fizera – e sem dúvida há em Florbela ecos do drama de Sá-Carneiro), criando deste modo um abismo intransponível entre os dois seres, o real e o de papel. (…)" Há quase que uma fobia em alguns estudiosos de Florbela (e Urbano Tavares Rodrigues parece ter dado o mote) em dar ênfase ao percurso suicida de Florbela. A comparação com Mário de Sá Carneiro é extremamente abusiva: Sá Carneiro (doente também a nosso ver) suicidou-se publicamente numa roda de amigos depois de ter organizado como que uma peça que culminava na tragédia que foi a sua morte. Não há qualquer ponto de equiparação senão o facto de ambos serem poetas. Mas muitos deles (poetas) morreram na cama. Alguns com avançada idade…como Soror Mariana Alcoforado com a qual Florbela tem tantos laços referenciais. Segundo estas concepções, que o não dizem abertamente, o suicídio seria assim um ponto de encontro e comunhão final entre a poética e a vida. Aceitamos perfeitamente que uma dada vivência possa ser factor despoletador e motivador do suicídio, mas a tendência suicida não existe em grupo (salvo nalgumas tribos africanas em que nem sequer é encarado como o suicídio "pecaminoso" e proibido das sociedades judaico - cristãs). A forma de encarar a morte é que é importante para esta destrinça e entre Sá – Carneiro como em Antero de Quental as diferenças com Florbela são abissais. Para um representa evasão, para outro desespero, para Florbela a morte é o culminar ( coroar ) da vida. Aliás, as descobertas das ligações temáticas da obra de Florbela com a modernidade é fato recente, o que é pelo menos estranho que seja recente. Como se sabe passou despercebida no seu tempo (um tempo extremamente rico para a poesia de expressão portuguesa). Compreendendo o momento histórico como contributo fundamental para a tessitura de qualquer leitura crítica, M.L. Leal não deixa, contudo, de confrontar o pensamento de Júdice ao de Jorge de Sena que, anteriormente, há quase 50 anos, separava a escrita literária de Florbela dos modernistas: "(…) É notável que um Jorge de Sena tenha aproximado Florbela Espanca de Mário de Sá-Carneiro por partilharem a mesma "condição trágica de poeta", e não tenha reconhecido nas suas obras nenhuma afinidade temática ". Percebe-se, presentemente, unanimidade entre críticos da obra florbeliana quanto à existência de um Sujeito em crise e a sua anulação e projecção num Outro, índices denunciadores de tragicidade na escrita de ambos.(…)" Ora Jorge de Sena não refere nada disto, pelo menos desta forma…faz o elogio da poetiza, disserta sobre a sua condição feminina (estamos em 1944), repara na sua frustração de não ser tão poeta como Américo Durão ( que a cognominou de Soror Saudade ), personagem esta que Florbela admira e faz ( Sena ) recair sobre a sua condição de mulher os handicaps poéticos e mesmo vivenciais da mesma. Ressalta aqui aquilo que temos vindo a dizer: o elo encontrado por, neste caso, Jorge de Sena, e ressaltado por M. L. Leal, que liga Florbela aos modernistas é apenas um elo de condição trágica. Florbela Espanca não é uma poetiza rica, no sentido em que outros (e mesmo Sá Carneiro) o foram…a sua temática acaba por se tornar mesmo monótona e o quantitativo e qualitativo dos seus termos e imagens estão muito longe de um António Nobre ou mesmo de Américo Durão, por exemplo também…mas mesmo Fernando Pessoa e os seus heterónimos fizeram muito poema de inferior qualidade (só que não terão feito proporcionalmente tantos). A estudiosa Dal Farra salienta também essa proximidade entre os dois (Florbela e Sá Carneiro). Compreende, entretanto, a "despersonalização" (como fizemos referência acima contrapondo-a a desidentificação) como insistente temática que percorre a poesia da autora alentejana, por se constituir parte integrante de sua condição feminina, comprometedora da objectividade poética e do fingimento literário. Em Florbela, o que ressalta é a sinceridade do sujeito e não uma atitude estética que negue uma "ilusão de sinceridade". No prefácio à edição Martins Fontes dos Poemas, Dal Farra analisa o sentimento de devoção que Florbela Espanca nutre pela produção de Américo Durão e identifica a incompatibilidade literária entre esses dois mútuos admiradores: Ora, a chave de ouro de "A um livro" [Livro de Mágoas, p.150], embora desenhe um sinal de menos para a poética de Florbela diante da de Durão, revela que a jovem poetisa deve ver nesta impossibilidade de descartar-se das conturbações emotivas antes um atestado da sua superioridade feminina, da qual, aliás, jamais abdica. (Citamos aqui Dal Farra). Ora é evidente que a dualidade masculino feminino (aliás o próprio Jorge de Sena refere que a escrita se quer assexuada) só se coloca porque existe uma afirmação extrapolada da feminilidade de Florbela com algumas fusões com o extrapolar da masculinidade. Não terá sido fácil a uma mulher que gostava de poetar confrontar-se com a necessidade de escrever no "Modas e Bordados", como tantas outras por esse mundo fora houve. As grandes bases de publicação independente da literatura e da poesia escrita por mulheres assentaram em revistas deste género ou em folhetins escritos a livro. Numa sociedade patriarcal, onde a escrita feminina que mais sobressaía, era tolerantemente vista e lida pelos autores mais conhecidos ou mesmo consagrados, tal implicava uma negociação com o masculino nem sempre desinteressada. (Voltando a Dal Farra) E é isso mesmo o que torna ambas as poéticas tão desconfortantes: uma é...masculina – quer confessar a dor como fingimento: a outra é...de mulher e tem a convicção de que sofre, o que transfigura o poema naquela operação sensitiva a que me referi. Nessa direcção, pode-se compreender que todo o trabalho poético para a "Castelã da Tristeza" seja uma tortura entre a confissão do que "deveras sente" e a "realização de um verso puro", "d’alto pensamento", desprovido de subjectividade que denuncie "conturbações emotivas": Tortura
Tirar dentro do peito a Emoção, A lúcida Verdade, o Sentimento! _ E ser, depois de vir do coração, Um punhado de cinza esparso ao vento!... Sonhar um verso d’alto pensamento, E puro como um ritmo d’oração! _ E ser, depois de vir do coração, O pó, o nada, o sonho dum momento!... São assim ocos, rudes, os meus versos: Rimas perdidas, vendavais dispersos, Com que eu iludo os outros, com que minto! Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse, a chorar, isto que sinto!! (p.135)
O sujeito poético anseia pela "objectividade" que lhe aprisionaria a Emoção no instante da criação poética, evitando que seus versos se tornassem um punhado de cinza esparso ao vento. O controle do sentimento ajudar-lhe-ia a encontrar o verso altivo e forte, estranho e duro, necessário à perfeição formal que tanto inveja Florbela em poetas de expressão masculina, no caso, Américo Durão. (Acabando esta citação de Dal Farra). A nosso ver o problema que deve ser colocado é precisamente o inverso. O escritor ou poeta, masculino, nunca confessa abertamente (ou pelo menos com o mesmo grau de sinceridade com que Florbela o faz) a sua fraqueza interior porque "o homem não chora", e por muito progressistas ou descomplexados que tenham sido os autores do seu tempo não poderão nunca livrar-se deste problema e aqueles que se terão eventualmente livrado dele não entraram na história literária. Por isso também as emoções de Florbela trazidas quase ao vivo chocam…pela sua sinceridade. (Dal Farra, de novo ) Há, entretanto, uma incompatibilidade estética e um embate entre a Emoção e a Expressão. O Sentimento, depois de vir do coração, resulta em rimas perdidas, vendavais dispersos. A poetisa, portanto, tortura-se entre o verso sonhado, d’alto pensamento, e o verso expresso que se configura oco e rude, inconciliável com a sublimação estética. O eu lírico, em sua percepção, mente e ilude os outros. Tortura-se por não atingir o verso alto e puro. A ilusão que provoca em seu leitor é a de fazer poesia, sem sentir-se de fato poeta. Logo, mente e não finge. Na incapacidade de encontrar um verso puro, estranho e duro, que transmita o que verdadeiramente sente, acaba por se encontrar, na experiência da escrita, entre o sonho de uma linguagem poética exemplar e o verso que realmente produz. Entre o Sentimento e a Expressão, não há o afastamento necessário do Sujeito que lhe permita transmitir o fingimento da "dor que deveras sente". Nesse encontro, marcadamente feminino, entre o sentir e o dizer está a impossibilidade de assegurar uma "ilusão de sinceridade" e o desencontro entre a palavra – sentimento, transbordante de função emotiva, e a palavra – arte, fingimento, jogo, engodo, transmissora apenas, no desejo de Florbela, da emoção estética. Nesse soneto do Livro de Mágoas, Florbela sente-se comprometida com a subjectividade de seu ser, responsável pela feitura de versos que nada são além de vendavais dispersos, o que a faz sentir-se comprometedora da qualidade literária de sua pena, já que o poema almejado esteticamente não conseguiria ser fiel a seus sentimentos, dizendo a chorar o que ela sente. Duplamente sincera, a poetisa confessa-se impotente diante da forma literária, da mesma maneira que desmascara qualquer possibilidade de distinção entre o eu que sofre a dor que o aniquila e o eu que a expressa. Torturada ontológica e esteticamente, sonha ser a Poetisa eleita ( p.132) e percebe-se andar perdida no mundo, pois que na vida não tem norte. Vivendo entre o anseio da morte e o sonho, habita um universo de excepção, única maneira de abalar a ordem convencional, espaço do real onde se visualiza como sombra de névoa ténue e esvaecida: Eu... Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida... Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!... Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber por quê... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver, E que nunca na vida me encontrou! (p.133) Sombra, névoa, alma de luto, a invisível, uma visão sonhada por alguém. Assim se projecta o eu poético. Talvez tenha de si, a imagem que "as terceiras pessoas" dela elaboram. Sente-se, por isso, perdida, desnorteada, crucificada. Viver em estado de incompreensão, de invisibilidade, leva-a à sensação de marginalidade, de exclusão. O eu percebe-se a partir desse olhar alheio, estranho. O emprego do dêitico "aquela" acentua o afastamento entre o eu poético e o Sujeito em conflito com a alteridade social, onde se vê espelhada como sombra, alma de luto, aquela que passa e ninguém vê... O eu lírico desenha de si a imagem que os outros dela projectam: "Sou a que chamam triste sem o ser...". Incompreendida, percebe-se crucificada, não apenas em desacordo com o mundo, mas dele deslocada. Absolutamente fora do foco da visão socialmente padronizada, acaba por não ser encontrada nem mesmo por quem veio ao mundo para vê-la. Configura-se, por isso, etérea, vaga, marginal. Experimentando absoluta solidão, identifica-se como "cardo desprezado" (p.143), vivendo a dor de tantos desencontros: entre si e o mundo; entre o eu e o tu – esse Alguém que não a encontra – onde poise a cabeça, onde se deite (p.143); entre a dor sentida na alma e a palavra que, em relação à poética do Outro, gostaria de criar, mas que reconhece incompatível com sua condição de mulher. Tal incompatibilidade encontra-se dolorosamente expressa em "A um livro", soneto de Livro de Mágoas (p.150), reescrita de uma primeira versão com o mesmo título, pertencente a Trocando Olhares (p.116). Diante da excessiva vivência da dor, estigma de sua condição feminina que, por si já a marginalizaria, a poetisa do Alentejo espanta-se com o transbordamento de sua própria pena no processo de escrita, recusando, entretanto, imprimir-lhe as tintas de fingimento literário. Sinceramente sofredora, sobrecarrega de subjectividade sua pena poética e eleva-a ao estatuto de escrita insurrecta, paradigmática da enclausurada condição da palavra feminina no universo da literatura portuguesa. "In Florbela espanca – o espanto da pena - Rita Maria de Abreu Maia - UFRJ - CEFET/Campos"
Daniel Teixeira
Assiste-se ao nascer e ao desenvolver do sentimento e à interiorização do absurdo descrito mais tarde por Camus no seu Mito de Sísifo, por exemplo: "O homem absurdo não é servo de nenhum código moral; é, antes, um consciente imitador dos protótipos vivos da sua atitude: D. Juan, o comediante e o conquistador. O primeiro põe em acto «uma ética da quantidade, ao contrário do santo que tende para a qualidade» (p. 92). Para o segundo, a arte consiste em «fingir absolutamente, entrar o mais profundamente possível em vidas que não são suas» (p. 101). O terceiro, o conquistador, é aquele que se excede por ter consciência da grandeza do espírito humano, «mergulhando no mais ardente da alma das revoluções» (p. 110). Mas a «mais absurda das personagens (...) é o criador» (p. 114), e «a alegria absurda por excelência é a criação» (p. 118), ainda que esta seja para nada." Voltaremos a estes termos "criação e nada" tão presentes em Florbela, e igualmente faremos realçar a personagem de D. Juan cujo seguidismo é sugerido existir em Florbela por vários autores. Contudo seria bom desde já deixar claro que a ideia que se tem correntemente, de D. Juan e do Donjuanismo (mesmo contando com as reformulações que lhe foram trazidas quer pela música quer pelas reposições temáticas ao longo de mais de duzentos anos) não se pode resumir a alguns aspectos freudianos (que são bastante interessantes, nalguns casos, diga-se de passagem, e até muito ridículos noutros casos, diga-se também). D. Juan (aquele D. Juan que se foi perpetuando) não é mais que uma imagem ajustada de Zeus já na sua fase decadente, de Deus da ira (contra os metafóricos Titãs) a Deus do perdão e fusão com o mundo dos homens em que a sua "vida" era já motivo de risota superadora dos gregos dadas as suas aventuras amorosas e a eterna perseguição da sua mulher e irmã Hera. Há também, em D. Juan, um pouco da inconstância e falha de virtudes de um Paris indirectamente originador da guerra de Tróia. Aliás, uma das interpretações freudianas que vimos da personagem de D. Juan detém-se precisamente neste tipo de característica; alguma inconsciência ou falta de capacidade de valorização entre o Bem e Mal acrescida de uma sumária equiparação a um Cupido que se "recusa a crescer" ( "complexo" de Peter Pan ) transformado no próprio Eros com o qual o "burlador" acaba também por ter afinidades nesta sua característica dado que Eros depois de ter conseguido convencer a Terra a copular com o Céu se apropria dela, fazendo-a sua não no sentido físico mas sim no sentido da dominância. Mas Zeus, uma personagem omnipresente desde os princípios da humanidade é um pouco ou muito o homem ele mesmo vivendo as contradições que são próprias do relacionamento entre os sexos. As suas fugas ao "obstáculo" Hera (sua mulher) não serão mais do que entraves psíquicos postos pela lenda de forma a dificultar a acção de Zeus (neste caso) e valorizar o que não seria valorizável: como Senhor dos Deuses teria seguramente mais poderes que as mortais ou semi-deusas ou deusas que seduzia o que tornaria cada "conquista" um aborrecimento mítico. "(…)Para Homero, Zeus era imaginado de duas maneiras diferentes. É representado como o deus da justiça e da misericórdia, o protector dos fracos e o punidor do mau. Como marido de sua irmã Hera, ele é o pai de Ares, o deus da guerra; Hebe, a deusa da juventude; Hefaísto, o deus do fogo; e Ilíthia, deusa do parto.(…)" Nesta primeira parte da visão de Homero sobre Zeus a abordagem é Moral e Ética, em certo sentido límpida e virtuosa. Daí que tenhamos alguma dificuldade em entender a sua outra face, a face licenciosa e amoral. Mas desde quase sempre ou mesmo sempre o mundo tem sido "regulado" por dualidades e oposições e aceita-se, também quase desde sempre, que uma prefiguração contraditória acaba por servir de termo antagonicamente comparativo e facultador da opção para a escolha de um dos termos, fomentando assim as réstias do livre arbítrio necessário ao equilíbrio humano. Ainda Homero "(…)Ao mesmo tempo, Zeus é descrito como um deus que se apaixona por uma mulher a cada instante e usando de todos os artifícios para esconder sua infidelidade da esposa. Os relatos de suas travessuras eram numerosos na mitologia antiga, e muitos de seus filhos eram o produto de seus casos de amor tanto com deusas quanto com mulheres mortais. Acredita-se que, com o desenvolvimento de um sentimento de ética na vida grega, a ideia de um deus lascivo, algumas vezes um ridículo deus – pai tornava-se desagradável, e então as lendas posteriores tenderam a apresentar Zeus com uma luz mais gloriosa. Seus muitos casos com mortais às vezes são explicados como o desejo dos primeiros gregos de traçar sua linhagem até ao pai dos deuses." ( Nota de D.T.: O que não deixa de ser um "sacrilégio" tornando pior a emenda que o soneto, como se costuma dizer). Evidentemente que a personagem construída por Tirso de Molina sob o sugestivo nome de "El burlador" ( Em português poderá ser "O Enganador", termo que foi muito utilizado numa outra perspectiva relacionada que é a da sedução de virgens com promessas normalmente de casamento) é uma personagem extremamente interessante, quer na sua época quer antes e mesmo depois. José Zorrilla reformulou a personagem no Sec.XX, mas há mais o "Don Giovanni" de Mozart, um poema sinfónico de Richard Strauss, o Don Juan de Molière ou o de Lord Byron e mesmo no cinema a personagem tem sido explorada (D. Juan de Marco). D. Juan personifica ou simboliza os desejos não propriamente de libertinagem mas sim os desejos de manipulação e poder de alguns seres humanos sobre outros, nesta forma de Molina um pouco adaptada a uma época de Reforma religiosa propiciando ao mesmo tempo uma fuga a esse ambiente cerrado e ameaçadoramente ascético. Á claro que o burlador acaba por não conseguir burlar Deus e a moral então vigente e acaba por arder nos fogos do Inferno ( no caso de Molina ) ou por arrepender-se dos seus pecados, no caso de Zorrilla. Todos conhecem a história em linhas gerais (o título original de Tirso de Molina é "O burlador e o convidado de pedra"): D. Juan faz-se passar por outras pessoas de forma a ter relações com as suas amantes e goza do privilégio oratório (e de estatuto) que o leva a obter mais uma ou duas conquistas, não interessa muito. A ideia que fica neste plano é que se trata de uma personagem amoral que utiliza subterfúgios para obter (não obtendo no sentido da continuidade) os favores de algumas damas. Aquilo que em Zeus resulta num filho ou filha resulta em D. Juan numa relação igualmente esporádica cujas consequências se não vêm a conhecer. O fecho moral (ou o castigo após os crimes que incluem a morte do pai de uma donzela seduzida) é construído pelo próprio D. Juan, que, na boa óptica envolvente e irreversível que virá a ser uma das pedras de toque de Camus, acaba por convidar a estátua do indivíduo que matou para jantar em sua casa. A estátua comparece e ele (D. Juan) na retribuição da gentileza acaba por ir igualmente jantar ao túmulo do falecido estatuado vindo depois a ser puxado por este para as chamas do Inferno. Em Zorilla D. Juan regenera-se, e provavelmente terá entrado para algum convento sendo tradição fazer a representação da peça de Zorilla ( D. Juan Tenório ) no dia de Todos os Santos ( 1º de Novembro). Kierkegaard referiu-se também a D. Juan como um sedutor e é essa a imagem que tem ficado ao longo dos tempos embora a personagem seja bem mais complexa do que o resíduo que dela se tem feito. Assim, descreve-se hoje o donjuanismo como uma personalidade que necessita seduzir, obsessivamente ou de forma continuada de maneira a não perder, pela não – conquista, uma parte do seu ser com este conteúdo já interiorizado e identificado. Quanto mais dura é a conquista mais sobe a fasquia e o desejo de a completar, sendo que esse completamento é meramente conjuntural e não estrutural. Tudo funciona como se o processo de conquista e a realização da mesma seja organicamente uma acumulação de adrenalina que após se liberta para vir a renascer numa outra situação igualmente ou mais dura ainda. Dizem os psicanalistas (e nós também) que as pessoas com esse traço não conseguem ficar apegados a uma pessoa determinada, partindo logo em busca de novas conquistas. As pessoas com essas características são os anarquistas do amor (Sapetti), tornando válidos quaisquer meios para conquistar, entretanto, os sentimentos da outra pessoa não são levados em conta. Aliás, Foucault enfatiza essa questão ao dizer que Don Juan destrói as duas grandes regras de ouro da civilização ocidental; a lei da aliança (casamento) e a lei do desejo fiel (ou fidelidade). O problema que se coloca é antes um problema ético, de razão prática: não sendo esta finalista, ou sendo uma ética de meios, como é o caso, sem valores mandatórios transcendentes ou apriorísticos que a suportem, é evidente que o campo do livre arbítrio estando colocado e sendo decidido na esfera do julgador em causa própria acabam invariavelmente por proporcionar situações destas em que o envolvimento moral acaba por moldar-se ao interesse ou à personalidade do indivíduo. Ora o donjuanismo feminino que é assacado a Florbela Espanca tem a ver com estes aspectos que temos vindo a referir traduzidos no feminino, sem que tal implique qualquer masculinização da personagem de Florbela embora se fale dela também aplicando o termo hermafroditismo. Não afastamos a hipótese de Florbela, por força das circunstâncias sociais envolventes, ter criado para si mesma um conjunto de princípios (ou condições apriorísticas) que tornassem o confronto constante com a ordem social e psicológica vigente menos agressivo para si mesma. Um escudo, ao fim e ao cabo, que a defendesse naquele limiar obscuro existente entre a sua necessidade de afirmação como mulher e o paradigma da afirmação masculina ou masculinizada. Fala-se, algures na sua biografia, que Florbela teria tomado como modelo, ou pelo menos teria tolerado como modelo identificativo da sua atitude neste campo o seu pai e as suas constantes infidelidades. Numa referência do seu diário que não sabemos exactamente a que se refere pode no entanto, e apesar de tudo, ler-se a seguinte imagem contemplativa: 24 de Novembro de 1930- Diário " Há uma serenidade consciente na linha firme daquele perfil. As mãos têm raça e nobreza; o sorriso, ironia e bondade; os olhos…não se examinam: deslumbram. Deve ter vivido dez vidas numa só vida. Há sonhos mortos, como violetas esmagadas, na pele fina e macerada das pálpebras. Que rastos deixarão na minha vida aqueles passos, silenciosos e seguros, que sabem o caminho, todos os caminhos da terra?" A imagem tanto pode ser masculina como feminina, mas realça-se a ideia da força e da serenidade, ou seja da capacidade quase intelectualizada de adaptação a " todos os caminhos da terra" pelo que pendemos mais para que esta seja uma imagem de seu pai. No entanto o pai de Florbela não foi propriamente um exemplo de constância ao longo da sua vida, pelo menos por aquilo que vamos sabendo. E para mais Florbela escreve (ou data) este pensamento de um mês antes da sua morte efectiva e no mesmo mês em que tinha feito uma tentativa de suicídio. Talvez fosse simplesmente isso que Florbela invejasse no pai ou na imagem que tinha dele, aquela que guardava ou que nos dão a entender que ela guardava. Como homem e como princípio identificador é preciso um elevado grau de tolerância para invejar um homem que a fez nascer nas condições em que ela nasceu, que, em rigor é parte integrante do pecado do qual se não consegue livrar, que se divorcia (embora esta questão seja…questionável dado que o hábito de casamento era pela Igreja, na qual estava vedado o divórcio) da sua mulher quando ela está já doente e poucos anos antes dela falecer, breve, não se vislumbra facilmente no pai de Florbela qualquer capacidade de inspirar aquela confiança e aquela estabilidade emocional necessária. Mas este, como outros assuntos, serão objecto de alongamento posterior.
L'automne
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