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(CONTINUAÇÃO 4) |
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Quanto a Marco Aurélio e Florbela teremos de nos socorrer de uma mais longa citação vindo a incluir alguns aspectos que desvendam o tipo de relacionamento directo e subjectivo de Florbela com seu irmão: Começa assim a introdução à publicação póstuma do livro "As máscaras do destino", publicado em 1932 e dedicado "A meu querido irmão, ao meu querido morto": "Vários grãos de areia, destinados a ser queimados, espalharam-se sobre o mesmo altar. Um caiu mais cedo, outro mais tarde; que lhes importa?" (Marco Aurélio) A edição a que tivemos acesso, dos Pensamentos de Marco Aurélio, no seu Livro IV, versículo 15 diz:" Vês aí numerosos grãos de incenso sobre o mesmo altar. Um cai primeiro, o outro a seguir, nada disso tem importância." As diferenças encontradas na citação devem-se em grande parte ao facto de Marco Aurélio ter escrito em grego sendo assim os seus textos objecto de várias interpretações sobre a forma de traduzir. Contudo, na versão apresentada por Florbela, cuja edição se desconhece, estão contidas algumas afirmações (que não estando na outra versão que possuímos) nos levam a pensar que se tratou de um tradutor conhecedor da filosofia estóica porquanto o termo "espalhados" no que se refere aos grãos de incenso reflecte a "simpatia universal" estóica que Marco Aurélio refere como sendo o "nó sagrado" que liga todas as coisas e, segundo o qual, todos os seres concorrem para a harmonia do próprio mundo (o que se subentende na ordenação temporal); a mistura total reflecte esta concertação providencial de um mundo em que o homem é apenas uma parte. O problema que se coloca neste texto de Marco Aurélio (e de acordo com a filosofia estóica) não é o facto da sucessão no tempo (neste caso da queda de cada um dos grãos de incenso) mas sim o facto de que ambos são para queimar e são queimados, sendo portanto indiferente a dilação temporal. É justo que façamos esta reflexão prévia ao desenvolvimento que a própria Florbela Espanca faz sobre o texto de Marco Aurélio na medida em que nos parece claro (neste seu primeiro livro em prosa) que a sua intenção, ainda que não muito claramente declarada, é a de diluir essa temporalidade entre a morte acontecida de Apeles e a sua própria morte. Contudo, e neste passo, acho que não se aplica qualquer ideação suicida da parte de Florbela Espanca, mas sim de uma interiorização da sua própria mortalidade. Por isso, entremos no desenvolvimento que Florbela faz: "Sobre uma pedra tumular ficaria bem esta sentença do mais poeta dos sábios, mas nada de firme, nada de eterno se pode gravar nas ondas, e são elas a pedra do seu túmulo. O grão de incenso que, sobre o altar, caiu mais cedo, ardeu mais cedo; foi apenas um grão de incenso entre o número infinito dos que hão-de cair e arder, entre a imensidade doutros que já caíram, que já arderam; e o infinito desapego, o desesperante abandono, a imensa renúncia do símbolo faz tombar num gesto de resignação as minhas mãos crispadas, tapa-me a boca que quereria gritar, abafa-me os soluços e as blasfémias na ansiosa expectativa do momento em que outro grão de incenso há-de cair e arder… "Um caiu mais cedo, outro mais tarde; que lhes importa?" Importa aqui acrescentar mais alguns pontos que nos servem sempre para encontrar pontos de convergência com as palavras de Florbela Espanca ditas neste caso em particular mas espalhadas pela sua poesia e pela sua prosa, ainda que consideremos abusiva uma interpretação reservada ou exclusiva do fogo visto neste plano em Florbela. O tema "fogo" não implica necessariamente suplício ou dor. Os elementos da cosmologia (Física para os Estóicos), interligam-se com o próprio ser do humano e dos outros seres, uma vez que se trata de uma visão palingenésica do todo (múltiplo) e em que Deus e a Natureza se identificam à partida numa mesma unidade. O elemento fogo (que tem princípio activo na Física estóica tal como o ar) participa em dois processos em que é elemento importante: num processo é elemento perecível mas animado de uma perpétua transmutação e é (conjuntamente com o ar) "donde provém em primeiro lugar tudo o que nasce e aquilo a que finalmente tudo se reduz" e por outro lado produz uma conflagração global e universal onde todas as coisas são transformadas em fogo. Mas essa conflagração não trata da destruição do universo (do fim do mundo, pelo menos de uma forma "finalizante", falando correntemente) mas sim da sua regeneração onde tudo volta a ser alma e divinizado. Há, por consequência, um eterno retorno dos seres e dos acontecimentos: "Haverá de novo um Sócrates e um Platão (…) e esta restauração não se produzirá apenas uma vez mas muitas; ou, para ser mais preciso, todas as coisas serão restauradas eternamente". (Nemésios). Parece-nos evidente que esta crença Estóica, por muito contestável que possa ser, se aproxima em muito de muitas crenças que referem quer a reencarnação nas suas diversas matizes quer a ressurreição. Existe ainda um outro conceito do fogo, que é aquele fogo "perecível", destituído de qualidades artísticas, tal como é definido pelos estóicos, que é o "nosso" corrente fogo de utilização corrente que com o outro fogo apenas parece ter uma afinidade terminológica. Aliás, o estoicismo tem sido analisado mais a fundo nos últimos tempos, sobretudo após a rejeição que Nietzsche fez das doutrinas platónicas. Para este filósofo a filosofia perdeu muito com a entrada de Sócrates / Platão em cena e lamente este autor que, para além dele, muito pouco tenha ficado da cultura pré-socrática (como se sabe existe uma dualidade socrática e pré-socrática em Platão / Sócrates) e que, na sua ideia aquilo que ficou, em textos quantitativamente e qualitativamente relevantes tenha sido preferencialmente o Epicurismo e o Estoicismo que ele mesmo também rejeita. Um dos últimos vultos relevantes do Estoicismo foi precisamente Marco Aurélio que Florbela cita, embora Montaigne atrás referido tenha sido considerado como tal (ou influenciado pelos estóicos) e mesmo posteriormente Pascal. Contudo o que interessa para o caso é que a morte, sobretudo tão bem documentada em Marco Aurélio, é vista com o distanciamento próprio de quem sabe que sendo ela inevitável não é, por isso, relevante para o cúmulo das preocupações humanas em busca do Supremo Bem ou da sua fusão noutra forma com a Natureza da qual faz parte integrante assim como Deus ou os deuses. Para o estóico a morte não é o fim de nada, porque para além desse nosso imaginário "nada" as coisas continuam e repetem-se ao longo dos tempos. Foram apontadas semelhanças entre o estoicismo e alguns aspectos da cultura religiosa judaico-cristã apontando-se, para além de outras razões, o facto de o estoicismo ter sido uma "religião" de elites enquanto que o cristianismo terá sido (e é) uma religião para todos (por muito discutível que seja o seu elitismo selectivo que aliás Kierkegaard analisa ao extremo na sua teoria da identidade). A morte não é, nem esperada nem desejada, porque, para os estóicos tudo se passa numa relação de necessidade harmoniosa: não existe fatalismo, no sentido redutor, mas sim consciência de que ela tem de acontecer. A familiaridade de Marco Aurélio com a morte é extrema e neste aspecto a relação com o Epicurismo também existe ainda que de forma contraditada: para estes trata-se de "viver o dia", carpe diem, para os estóicos a inevitabilidade da morte nada apressa ou atrasa porque ela lhes é simplesmente indiferente. A paixão, sempre tão presente em Florbela (será que está mesmo?!) é vista numa perspectiva intelectualista…o homem pode ter paixões (e tem-nas) mas por incapacidade ou impossibilidade de compreender a razão dominante que leva, ou deve levar, à sabedoria que, por sua vez, é o topo da pirâmide da filosofia estóica, uma ataraxia que se encontra presente em muitas religiões ditas contemplativas (Budismo, por exemplo). Neste aspecto é seguida uma linha de raciocínio que parte do nascimento: ter paixões é semelhante a ser criança, o que para os estóicos é um símbolo da fragilidade perante as boas opções. A tensão existente entre o ser apaixonado (ou com paixão) e o ser que sabe optar racionalmente, e a razão é muitas vezes identificada como sendo ela também o cúmulo da sabedoria quando atingida na sua plenitude, é, tal como na cultura judaico – cristã, um factor comparativo que impele para a boa opção, basta, para este caso, ler os Dez Mandamentos quanto ao seu espírito delimitador entre o bem e o mal, que no caso estóico são as boas ou as más opções. E o problema optativo é importante (e ainda bem que o temos vindo a repetir) porquanto o "excedente" de liberdade que existe para o homem, no sistema estóico, é extremamente reduzido, mas tal como todas as outras coisas, considerado suficiente e fazendo parte da harmonia universal. O indivíduo, no meio, de todos os determinismos que o envolvem, tem o livre arbítrio de optar entre duas ou mais situações. Como exemplo: como não pode evitar que chova, resta-lhe evitar a chuva o que pode parecer extremamente simples mas é adequado como exemplo do espírito estóico. À frente veremos noutro autor, (Cioran que nos apoiará em Florbela) que a "fuga" a este cerrado determinismo se encontra na libertação das paixões, ou seja, segundo os princípios estóicos, num regresso à infância intelectual. De notar que a opinião é nossa, os estóicos conviviam – e convivem – bem com este determinismo, que não tem nada de fatalismo no sentido persecutório, e convivem bem com ele porque segundo as suas concepções de Deus e do Mundo são simultaneamente determinantes e determinados. Após a sua morte, o indivíduo é (em tempo indeterminado) re-trazido à vida com base naquilo que foi a sua vida anterior. A opção de escolher outra coisa é-lhe colocada, mas, (e estes sistemas nem sempre primam pela lógica mas sim pelo significado que pretendem imprimir) ele, nesse momento, esquece-se de optar, neste caso por coisa diferente, pelo que, por isso, "haverá um outro Sócrates, etc.". Esta dissertação sobre o estoicismo pretende fazer realçar em Florbela o período em que é possível falar-se da morte sem que isso implique a ideia do seu suicídio (que é uma das pechas histórico – florbelianas que já temos referido). A morte como companheira, em Florbela, não é sempre, a morte desejada. E mesmo quando isso acontece, há períodos em que ela aparece metaforicamente como desejada mas não o é: é apenas uma análise mais profunda do valor da vida e da morte sem que se lhe atrele necessariamente qualquer consequência. Mas vejamos logo abaixo algumas considerações sobre Cioran e de Cioran para ficarmos com uma ideia mais aprofundada sobre esta questão, ou seja, sobre a validade (em termos vivenciais actuantes) das palavras de Florbela sobre a morte na sua poesia.
Diz Cioran: " (…) Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes. (...) Escrevo para não passar ao acto, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indirecta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruína todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo.(…) " (Nota de D.T. Ver o conflito entre a paixão e a sabedoria nos estóicos acrescentando-se agora que a paixão também é interpretada como sendo loucura na filosofia estóica). " (…) A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal. (...) Escrever é uma provocação, uma visão infelizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. (…)" (Nota de D.T. " (…) Mais tarde, a legítima e orgulhosa aspiração atinge um verdadeiro auge. Então (Florbela) encontra suprema expressão no soneto "Mais Alto", que, não sendo dos seus mais perfeitos, é espantoso pelo que, de relance, ilumina de versos fuzilando como relâmpagos de génio: Mais alto, sim! Mais alto, mais além Do sonho, onde morar a dor da vida, Até sair de mim! Ser a Perdida, A que não se encontra……………… Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber O mal da vida dentro dos meus braços, Dos meus divinos braços de Mulher! Foi Jorge de Sena quem chamou a atenção para este soneto, ousando dizer o que não creio tivesse Florbela ousado sonhar: que impossível nos é lê-lo sem evocar Aquela que o mundo Cristão venera como suprema idealização da Mulher. ( Nota de D.T. O pudico Régio poderia ter escrito Virgem Maria…) Não crendo, porém, que conscientemente houvesse Florbela ousado sonhar tal aproximação, bem se poderá crer haver ela irrompido das profundezas do seu subconsciente (…)" In José Régio, Estudo Crítico sobre Florbela Espanca. " Ainda em Cioran: (…) Nada mais miserável do que a palavra, e no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agente de um êxtase invertido... Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais! (…) " Nota de D.T. Temos vindo a referir o efeito terapêutico da poesia e do acto de poetar em Florbela, daí que tenhamos inscrito a sua poesia longe do campo da exterioridade, nomeadamente quando fizemos referência à alteridade em Florbela como sendo um processo intimista. "(…) A questão do desapego conduz Cioran ao ponto crucial da existência: o suicídio. "Poder dispor absolutamente de si mesmo e recusar-se: existe dom mais misterioso? A consolação pelo suicídio possível amplia infinitamente esta morada onde sufocamos. A ideia de nos destruir, a multiplicidade de meios para consegui-lo, (1) sua facilidade e proximidade nos alegram e nos assustam; pois não há nada mais simples e mais terrível do que o acto pelo qual decidimos irrevogavelmente sobre nós mesmos. (…) Ele próprio conclui, categórico, que só existe pela vontade de deixar de existir.(2) (…)" De reparar que Montaigne fala neste aspecto da diversidade de meios para morrer e da unidade de um só meio para nascer. De reparar aqui que Cioran ao pregar a vontade de chegar ao fim, como motor da vida, a toma pela negativa, como parece evidente, mas dentro desta vivência há toda uma procura de aperfeiçoamento ou de busca " de uma razão ou saber" com o qual se confronta no acto da criação da escrita. A palavra, por sua vez, na sua significação como vacuidade, vamos encontrá-la em toda a Florbela…e nos estóicos, que pregam uma lógica do acto, ou seja, uma lógica fenomenológica. (In "Escrevo para me aliviar" Confissão Resumida, páginas 123 e 124; em "Exercícios de Admiração", de E. M. Cioran) Nota de D.T. No entanto Cioran não se suicidou e faleceu com mais de oitenta anos. Com este texto pretendemos apenas reforçar uma tese que temos vindo desenhando ao longo deste conjunto de textos. O suicídio de Florbela não resultou da sua poesia nem a sua poesia é resultado da sua ideação suicidária. Um facto e outro são absolutamente independentes… Daniel Teixeira voltar ao início do ensaio sobre Florbela
Uma das coisas que mais interessante pode notar-se em Florbela Espanca e na imagem que tem sido criada dela é que, sendo Florbela uma "poetiza do amor", do "amor impossível" ou do "amor não correspondido" e tendo ela escrito um diário, amputado nas publicações, é certo, mas mesmo assim um diário, que nele ou nas suas inúmeras cartas que chegam ao conhecimento do público não seja encontrada uma única carta de amor, ou mesmo uma carta que não sendo de forma directa e explícita uma carta de amor, venha a demonstrar os passos de um processo amoroso. Encontram-se alguns traços de galanteria nalguma da sua prosa e pouco mais… Já escrevemos noutro capítulo destes textos que a ênfase sobre o amor colocado por Florbela Espanca, na sua poética e na sua prosa é o ideal de um amor platónico no sentido menos sensitivo do mesmo, ou seja, um amor que a existir apenas pode existir pela forma escrita. Não há vestígios de toque, existem referências ao beijo, aos lábios, às mãos e uma razoável quantidade de alegorias e metáforas que têm fundamentado um pretenso erotismo em Florbela Espanca mas que não entram no campo do sensualismo. Aliás, e correndo o risco de não sermos muito delicados, as únicas referências ou sugestões que se encontram sobre a sexualidade de Florbela Espanca são aquelas que resultam da enunciação dos seus dois abortos espontâneos. Mas vejamos como ela descreve a vida de casada: como um agasalho rodeado de gente simpática e atenciosa. "E quanto a mim podes finalmente estar sossegado; por um dos tais acasos, mas este raramente feliz, encontrei na vida aquele que o acaso me deveria ter feito encontrar mais cedo. Assim encontrei-o já envelhecida, com pouca saúde e pouco gosto de viver. Tudo o que tem sido possível fazer-se tem-no ele feito por mim: apanhou o farrapinho, aqueceu-o e anda agora com ele junto ao coração como se fosse um tesouro. Eu não sabia o que era tratarem-me bem, andava a pensar como seria e agora é que o sei. Tanto o meu marido como a família dele são muito meus amigos e cá estou muito bem. Podes pois estar sossegado, meu irmão querido, o teu pesadelo está enfim sem fazer tolices, disposta e envelhecer tranquila e a morrer em paz." O que nos resta como imagem visível de Florbela é a sua iconografia, algo agressiva, pouco sensual (mesmo tendo em conta os valores estéticos da época) e algumas referências ao facto de ela ser uma mulher atraente. Isto para além da sua poesia e da sua prosa, como é evidente. Não escreveu, Florbela Espanca, pelo menos aparentemente, cartas de amor, mas carta de ruptura temos uma interessante, aquela que Florbela terá escrito quando decide romper o seu primeiro casamento: " Estou cansada. Estou resignada. Já quase tudo me é indiferente. Eu espero, como já te disse, não discursos mas resoluções. Poupa-me a mais mágoas, que é uma obra de caridade. Adeus. Florbela." Mas mesmo esta carta é extraordinariamente seca e mais não faz do que por o selo numa relação acabada desde havia muito (havia cinco anos, sensivelmente) tal como se pode ver na sua carta a Júlia Alves já aqui referida. Falta disso, das cartas de amor numa mulher que tanto e tão diversamente "amou" socorremo-nos logicamente da sua poesia para a apelidar de intimista (o que é verdade) e para encontrar nessa mesma poesia os traços da intimidade e as suas manifestações de amor que ela, eventualmente, revelaria caso fossem publicadas cartas de amor suas. No entanto são várias as referências epistolares às suas queixas quer a Guido Battelli quer a Júlia Alves, sendo a um e outro atribuída uma "relação de cumplicidade" com Florbela, que não tem nada de estranho mas que se processa essa relação de cumplicidade em paralelo e sem nunca se encontrarem, pelo menos que se saiba (Battelli e Júlia). Ora, a "auto-devassa" da interioridade dos autores, sendo bastante utilizada em toda a história, é ao mesmo tempo uma revelação consentida e ficcionada. Uma forma de escrever, um estilo: o epistolar. Desde Montesquieu e as suas Cartas Persas até Maquiavel e o seu Príncipe ou mesmo D. Francisco Manuel de Melo e a sua Carta de Guia de Casados, trata-se de uma forma de escrever, como qualquer outra. Na literatura das cartas (e não na Epistolografia como estilo), mesmo que as palavras escritas pareçam sinceras e verdadeiras ninguém acredita piamente nelas senão quando são lidas ou publicadas contra o consentimento do seu autor. Talvez numa dúbia situação, em que se pode crer ou não nos conteúdos como sendo toda a verdade imediata e não apenas a verdade que se deseja seja vista, temos as cartas de Abelardo e Heloísa e mesmo, pelo seu crédito (embora sob a forma de Diário Íntimo) as Confissões de Santo Agostinho. Já nas Confissões de Jean Jacques Rosseau temos sérias dúvidas sobre a descrição da extensão da relação entre este e a sua protectora. "Fujo para longe de ti, evitando-te como a um inimigo, mas incessantemente te procuro em meu pensamento. Trago tua imagem em minha memória e assim me traio e contradigo, eu te odeio, eu te amo." Carta de Abelardo a Heloísa. "É certo que quanto maior é a causa da dor, maior se faz a necessidade de para ela encontrar consolo, e este ninguém pode dar-me, além de ti. Tu és a causa de minha pena, e só tu podes proporcionar-me conforto. Só tu tens o poder de me entristecer, de me fazer feliz ou trazer consolo." Carta de Heloísa a Abelardo Da ideia da devassa não consentida, talvez venha uma parte grande do impacto conseguido pelas cartas de Soror Mariana Alcoforado, sobretudo quando se trata de cartas vindas de uma Freira, proibida pela lei e pela moral não só de escrever cartas daquelas como de ter, alegadamente, sentido algo do que descreve. Por isso, a epistolografia é um género literário, com diferenças de outros, mas é sempre um género literário, e embora o refiramos não é esse o objecto principal do nosso estudo. Habermas considera que o Sec. XVIII terá sido o século das cartas e parte de princípios lógicos e psicológicos: segundo este autor as pessoas, nesse século, estavam interessadas em manter uma relação com as outras que focasse alguns pontos de intimidade (intimidade puxa intimidade) e desejavam exteriorizar a sua subjectividade mostrando um corte com a escrita formal e de circunstância ou meramente informativa. Por outro lado a grande escrita, ou a escrita para o grande público, ocupava algum espaço na relação social, popularizara-se (se este termo pode ser empregue num mundo maioritariamente composto por analfabetos) e ainda que se entendesse a sua ficção ou construção elaborada esta acabava por levantar questões de identificação com o leitor que tornavam útil um prolongamento mais pessoal ou detalhado. As relações interpessoais também sofreram algumas alterações que levaram à proximidade e à construção de núcleos e a comunhão de ideias ou a busca dela terá impulsionado igualmente o processo da epistolografia. Afastar o processo epistolográfico do processo confessional tem sido tese de alguns autores, mas acreditamos que um e outro processo tal como qualquer outro processo de escrita ou imagem nos podem fornecer elementos no campo da confissão íntima mesmo que o tema tratado nada tenha de tipicamente intimista na sua visibilidade. Mas, apesar de Hebermas, é no Sec. XVII que a epistolografia conhece o seu coroamento mitológico através de Madame de Sévigné: "As suas cartas têm todo o impacto que merecem". – Diz Mme de Coulanges a Sévigné em 1673. Um criado de Mme de Thianges acabara de chegar para pedir emprestadas as cartas do Cavalo e da Planície. Cartas com título e tudo, como se entende, e não reguladas por datas. Uma prima da Marquesa de Coulanges foi ela mesma, em pessoa, entregar as cartas à irmã de Mme de Montespan, a concubina do Rei. As cartas da Marquesa (de Sévigné) são esperadas com tanta impaciência e fazem com que sejam emprestadas por uma questão de estatuto. Quem não empresta as cartas que recebe pode ser suspeito de ter deixado de se corresponder com Sévigné ou de ter deixado de merecer as suas cartas. As definições sobre a epistolografia embora difiram por vezes acabam por bater em pontos comuns no que se refere à sua génese. Trata-se de uma forma de comunicação entre duas ou mais pessoas com a particularidade de, como estilo literário, diferir do romance ou da novela ou de outra forma de escrita para o grande público, anónimo por excelência. No caso da escrita por cartas o destinatário ou a ideia do destinatário está presente de uma outra forma e delimita, em certos aspectos, quer a forma quer o conteúdo da escrita. É preciso não somente "falar-lhe" mas também guardá-lo, preservá-lo, como "ouvinte". Daí a necessidade de o seduzir, de o elogiar e de utilizar outros artifícios literários – na sua grande parte conseguidos pelo método mais empírico da certeza e do erro – que reforcem a sua manutenção como leitor / ouvinte. Nada diferente, pois, de uma conversa falada normal entre duas pessoas que pretendem manter a sua relação, com a complexidade acrescida do meio puder ser menos eficaz ou diferentemente eficaz nos resultados pretendidos. " A tua carta que me prometia tanto contentamento veio afinal dar-me tanta, tanta tristeza como há muito tempo não sentia. Abri-a cheia de ansiedade para falar contigo à distância, cheia de alegria por ver que te lembravas ainda de mim. Que desilusão! Irmão querido, como tu deves sofrer para que aquele grito chegasse até mim com aquela ânsia, tu que nunca te queixavas, tu a quem eu me habituara a ver sempre sereno através das mil contingências da vida, tu a quem julgara sempre feliz." Daí os agradecimentos, as reflexões ou o remate das cartas. Fazem parte, estes, de qualquer tipo de correspondência, real ou fictícia. Numa sociedade que vive da gentileza ou do favor o agradecimento aparece como uma forma de compensação devida ao social ou ao núcleo imediato pelo pessoal ou privado. Nas cartas íntimas este composto pode ter por fito, também, incitar o destinatário a escrever / responder também. Muitas vezes o sentido destas extensões ao fundamento inicial e substancial da carta, ao fim e ao cabo o objecto dela, prolongam-se em divagações, em reflexões sobre a troca epistolar, sobre os seus meios e as suas capacidades como meio de "conversação" e sobre os seus resultados. "Como tu deves sofrer, e quanto daria eu para que tu assim não sofresses! Mas vê tu, meu amigo, o quanto nós somos pouca coisa, o quanto nós pudemos pouco pelos que amamos, em certas ocasiões – déssemos nós a própria vida – a nossa ternura é vã e inútil. Por ti nada posso, não posso nada, nada, e é isto que mais me aflige, que me desola, que me indigna como uma cobardia, como se tu gritasses por socorro e eu nem sequer te estendesse os braços." (Carta de Florbela a Apeles de 5-1-1926) O próprio valor do texto escrito é analisado, decomposto, medido, pesado e objecto de todo um conjunto de elementos acrescentados que diminuem o quantitativo da substância inicial do mesmo. "Conta-me tudo, diz-me tudo, abre a tua chaga como se eu fosse o teu próprio coração e ao menos comigo não te cales, meu amigo, (…) eu tudo compreendo, tudo sei; tenho passado a vida a arrancar-me espinhos, que não há nada que não tenha passado em mim, e a ronda trágica desta vida tem dançado comigo todas as suas danças. E para tudo tenho encontrado remédio, e tenho-me arrastado sempre; embora cansada e esfarrapada, tenho-me deixado viver. Eu bem sei, meu querido irmão, que para as traições, para as mentiras, para o que é vil e falso tem a gente remédio: tem o orgulho, mas para a dor que te faz mal, para essa nenhum remédio há." (Carta de Florbela a Apeles de 5-1-1926) Nas cartas para serem lidas também por terceiros o enfoque é colocado no mérito de quem recebe e de quem lê ou relê, ou seja, procura-se abranger um dado grupo na relação e especifica-se desde logo o carácter de privilégio desse relacionamento. "Estou num dos meus dias cinzentos, como diz o nosso poeta" escreve Florbela "construindo" assim desde logo um círculo de intimidade e de exclusividade, por exemplo. A pessoa que escreve parte, pois, de pressupostos bastante antigos que vêm desde a dialéctica socrático / platónica. O objectivo é sempre convencer o outro, o leitor da missiva e o processo volta ao seu início quando os papéis se invertem, e logo dentro dos conteúdos epistolográficos existe muito da "alma" de quem escreve e muitas vezes um conhecimento mais ou menos aprofundado da pessoa que recebe a carta, pelo que os dois intervenientes, o activo e o passivo alternadamente ou não fornecem informação sobre si mesmos e a sua forma de pensar. "Meu irmão da minha alma, a pessoa a quem mais tempo eu quero, aquele que eu principiei a amar pelo orgulho, pela admiração, por tudo que há em mim de mais constante e mais profundo, peço-te, peço-te por tudo que tenhas coragem, que olhes a vida sem desespero, embora a não possa olhar com amor nunca mais. Tu és preciso ainda, tu és preciso à minha felicidade; como queres tu que eu tenha alegria, que eu tenha sossego com as horríveis palavras da tua carta no meu cérebro? Mas tu não vês, meu querido filho, que é um crime pensar em aniquilar tudo que em ti é admirável, a tua inteligência, o teu carácter, tudo o que faz de ti um ser à parte, um ser único no mundo, porque tu tens desde a beleza física até à moral, tu és uma criatura de excepção; e olha em roda de ti; nunca ninguém deixou de gostar de ti, nunca." (Carta de Florbela a Apeles de 5-1-1926) Tem sido defendido também um aspecto que sendo uma componente do processo epistolar não nos parece no entanto tão relevante quanto isso: a distância, obrigando à troca de mensagens, também as despe de uma parte do seu conteúdo subjectivo ao mesmo tempo que impulsiona a comunicação directa. Poderá dar-se o caso de a distância entre os remetentes impulsionar quantitativamente a escrita mas não a aprofunda em termos qualitativos, isto visto num aspecto geral. Numa parte da carta de Florbela a seu irmão Apeles, então no Congo, e em tentativa de demover o mesmo das suas intenções de suicídio após a morte da sua noiva, que tem vindo a ser citada, pode ler-se a ideia daquilo que defendemos acima: "(…) Vê se podes vir cá contar-me tudo, como foi que essa coisa injusta e má foi ferir-te assim. A pobrezinha teve a sorte que têm no mundo as coisas que muito valem; vem falar-me dela, talvez te faça bem; só a mim tu podes dizer tudo, a mim, à tua querida irmã. (…) As cartas não dizem nada, não podem dizer nada. Eu só o que posso dizer-te é que nunca como agora te senti dentro do meu coração e que te peço que te lembres de que sem ti não posso ser feliz nunca mais. Não me deixes sem notícias, dize-me tudo e se puderes, logo que possas, vem, sim? (…)" sublinhados nossos - (Carta de Florbela a Apeles de 5-1-1926) Por outro lado, um outro tipo de distância, que são as dificuldades a transpor quando existe ou não uma proximidade física, esse tipo de distância já favorece a nosso ver o aprofundamento das matérias tratadas. Neste campo, a figura e a imagem criadas sobre Soror Mariana Alcoforado está presente não só na poesia de Florbela e naquilo que se lê dela, como está presente em parte da literatura da época (mesmo a feita por homens) não só pela exploração do ascetismo monástico (que se encontra igualmente em Américo Durão já aqui desenvolvido, por exemplo) mas porque acompanha toda a poética e a estética à volta da saudade. Aliás, a epistolografia, é, pela sua própria natureza razão de saudade, de manifestação da ausência da "coisa" falada e em certos planos expressa alguma impotência não só porque das palavras aos actos vai distância mas porque a própria convicção na eficácia do meio é posta em causa, como vimos acima. As cartas, por sua própria natureza, implicam afastamento ou apartamento, seja ele medido em distância seja ele medido em dificuldades de comunicação. A epistolografia, neste caso, aparece como um construtor continuado de frustração… Ora, as cartas de Soror Mariana são, essencialmente, cartas de saudade, com algum sabor profano e de profanação tão ao gosto desta época. Aliás o já aqui referido conto / novela de Florbela Espanca " As orações de Soror Maria da Pureza " está neste plano temático e psicológico. Não é relevante para este caso que as ditas cartas tenham ou não sido escritas pela Freira / Soror Mariana Alcoforado ou outro…interessa sim que elas foram publicadas, foram lidas e foram tomadas como genuínas pela intelectualidade e aceites como verdade pelo menos até ao período em que viveu Florbela Espanca, o que, mesmo nesta discutida hipótese de as cartas não serem senão um logro histórico demonstra pelo menos que a sua feitura por uma Freira era admitida como possível. Estamos, nesta altura, no tempo de Florbela e no princípio do Século XX. Este é um período em que psicologicamente se reavaliam os valores lançados pela Contra – Reforma no plano religioso e moral e quando a ira contra os Jesuítas (responsáveis episcopais pela execução dos ditames da Contra – Reforma) se reacende com mais força. Basta ler algumas referências sobre a história de Portugal para ter ideia de como esta ira se manifestava e de como era importante estabelecer algum culto do anti – jesuitismo e da anti-contra-reforma, embora a sua vertente anti – judaica tenha tido outras razões chamadas de colaterais ao longo dos tempos e muito nomeadamente no tempo do Marquês de Pombal e no tempo de D. Pedro IV. Assim em 5 de Outubro de 1910 dá-se a revolução republicana e o exílio da família real; no mesmo ano expulsam-se os Jesuítas e todas as ordens religiosas, reavivam-se os até aí extintos (desde 1901) Decretos Pombalinos e de D. Pedro IV, respectivamente de 3 de Setembro de 1759, 28 de Agosto de 1767 e 28 de Maio de 1834 (que valeu, este, a excomunhão Papal de D. Pedro IV), que desautorizam a criação de ordens religiosas, anula-se o ensino da doutrina cristã e do juramento religioso, extinguem-se as Faculdades de Teologia e de Direito Canónico, instaura-se a Lei do Divórcio, reformulam-se as Leis da Família, etc. Remetemo-nos por ora ao ano de 1910. Por último e aparentemente remotamente relacionado é Fundada a Revista Águia futuro órgão do Movimento da Renascença Portuguesa – cujo tema desenvolveremos mais à frente – que é dirigida por Álvaro Pinto na sua primeira série (1910-1911) sendo reatada a 2ª série em 1912, agora com Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoais (Pascoaes), Leonardo Coimbra, Augusto Casimiro e o fundador da 1ª série da Revista Águia, ou seja, os que mais tarde se vieram a tornar (com algumas cisões) os maiores vultos do saudosismo e do sebastianismo. Teixeira de Pascoais, um dos teóricos do saudosismo, desenvolveu algumas teses sobre a terminologia, a etimologia e a semântica saudosista, indo até ao ponto de "esclarecer" como deveriam ser escritas dadas palavras e quais deveriam ser as palavras a utilizar para significar dadas situações ou imagens. Sobre esta questão que podemos chamar de ética e poética da saudade e das suas relações com Florbela Espanca falaremos mais detalhadamente mais à frente. Ora, um reavivar consequente do combate à ética e à moral religiosa mais rígida era previsível e já se vinha demonstrando desde há muito, pelo que a inserção de Florbela Espanca neste espírito através da exploração da continuidade Alcoforadiana não seria de estranhar ainda que o não tenha feito (que se saiba) sobre a forma epistolar. Mas vejamos esta carta de Florbela Espanca: «(…) Estou hoje num dos meus dias cinzentos, como diz nosso escritor; dia em que tudo é baço e pesado como a cinza, dia em que tudo tem a cor uniforme e nevoente dele, desse cinza em que eu às vezes sinto afundar o meu destino. Estou triste e vagamente parva, hoje, e, no entanto, estou na capital do Alentejo; aos meus ouvidos chega o ruído dos automóveis, o barulho cadenciado das patas dos cavalos de luxo, o pregão forte e sensual que é toda a alma de mulher do povo, e por cima disto tudo, a espalhar vida, luz, harmonia, sinto o sol, um sol de fogo, o sol do meu Alentejo sensual e forte como um árabe de vinte anos! Pois tudo me irrita! Que direito tem o sol para se rir hoje tanto? Donde vem o brilho que Deus pôs, como um dom do céu, nos olhos das costureirinhas que passam? Donde vem a névoa de mágoa que eu trago sempre nos meus?! Vê?... É o dia pesado, o dia em que eu sou infinitamente impertinente e má como uma velhota de oitenta anos. Eu odeio os felizes, sabes? Odeio-os do fundo da minha alma, tenho por eles o desprezo e o horror que se tem por um réptil que dorme sossegadamente. Eu não sou feliz mas nem ao menos sei dizer porquê. Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não conhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos, compreendi muita coisa que até ali não tinha compreendido e parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite. Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o meu para sempre. Podiam hoje sentar-me num trono, canonizar-me, dar-me tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o meu castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que era... É a história da minha tristeza. História banal como quase toda a história dos tristes.» Este "ódio" aos felizes (sobretudo vindo de quem anseia pela felicidade) deve ser incluído, a nosso ver, no plano aproximado do ditado popular / religioso de que "felizes são os pobres de espírito". Florbela, embora demonstre nalguns casos alguma cultura, surpreende-nos por vezes com as escolhas dos autores que faz e com as influências que recebe deles. " (…) Florbela escreve a suas cartas numa prosa chã, entremeada por vezes de calão, e digna da Gyp de duvidosa fama literária, a quem ela própria se comparava. Os arranques emocionais e as sínteses de feliz beleza que fazem a sua originalidade poética estão de todo ausentes aqui (nas suas epístolas e mesmo no seu diário).(…)" Ora quem foi Gyp?! Foi uma "falida" Condessa francesa descendente do Mirabeau da Revolução de 1789 que produziu uma bibliografia impressionante pelo número, mas que, segundo rezam as críticas, é essa bibliografia igualmente impressionante pela falta de qualidade. Foi, para além disso anti-semita, pertenceu à organização de extrema direita francesa Action Française e ainda foi activista no famoso caso Dreyfus (do lado oposto ao de Emile Zola, como será evidente). Assim, e se alguma coisa quisermos comparar em Florbela a Soror Mariana Alcoforado teremos que nos ficar pela exploração do tema saudade, do desamor, dos desesperos que não encontramos nas suas cartas nem no seu diário, mas sim na sua poesia. No entanto há a carta que temos cindo a referir, cujos retalhos se podem encontrar amiúde em publicações que temos visto, que ela endereça a seu irmão que nos merece algum reparo e desenvolvimento por dois aspectos: a)- de um lado Florbela tenta convencer o seu irmão ( ausente em serviço militar no Congo ) que deve continuar a viver depois deste lhe ter feito saber da sua vontade de se suicidar após a morte da sua amada o que é, pelo menos, uma expressão da sua opinião sobre o suicídio; b)- Por outro lado dá a Apeles parte da sua relação com Mário Lage cinco anos depois de se ter casado e vivido em comum com ele, e logo, antes do conhecimento das tendências homossexuais deste. Neste plano haverá a notar que Florbela Espanca não demonstra muita perspicácia neste plano da avaliação das pessoas pelas quais se apaixona, ao ponto de vir a apaixonar-se em seguida por um pianista igualmente com tendências homossexuais e mesmo por um pretendente que mais tarde vem a saber que era casado. No entanto será de notar igualmente a sua persistência em manter relações com o outro sexo e mesmo na busca constante de companheiro, do qual acaba por desistir já num período tardio da sua curta vida remetendo-se ao seu casamento com Mário Lage até 1930 (data da sua morte). Daniel Teixeira voltar ao início do ensaio sobre Florbela voltar ao índice do ensaio sobre Florbela
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