Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

 

 

ensaiosobreflorbelaentrada  ensaiosobreflorbelatopo

Ensaio sobre Florbela

 

NOVIDADES

MAPA DO SITE

BUSCA NO SITE

LITERATURA

POESIA

BIOGRAFIAS E BIBLIOGRAFIAS

ESPANÕL

FRANÇAIS

ENGLISH

OPINIOES

GRUPOS - GROUPS

FORUNS MIL

PAGINAS AMIGAS

FORUM BRAVENET

JORNAL DE PAREDE

CHATS

JOGOS

E-MAIL

INSERÇÃO DE SITES

MUNDO NOTICIAS

MOTORES DE BUSCA

DOWNLOADS

WEBMASTERS

TRADUCOES

LISTA DE AUTORES

SOLIDARIEDADE

LISTA DE LINKS

 

LIVRO DE VISITAS

 LIVRE D' OR

 GUESTBOOK

 

 

 

 

Se quiser ver o conjunto de textos através de um índice carregue aqui na Página de Florbela Espanca.

INTRODUÇÃO AO TEXTO SOBRE FLORBELA ESPANCA

Antes de mais seria bom esclarecer que o autor deste ensaio ( um dos coordenadores deste site ) resolveu iniciar este ensaio sem grandes pretensões, fazendo uma pequena resenha. Depois, através das diversas consultas que foi fazendo ( quer em escritos escritos quer em escritos na Net ) chegou à conclusão que que o tema era de tal forma envolvente que dificilmente se poderia ficar pelo curto ensaio...depois, achou estranho que a maior parte dos textos que tinha lido e leu fizessem incidir a qualidade e a forma da poesia Florbeliana num plano que a tornava subsidiária da sua vivência pessoal ( isto numa tradição que vem desde Camões ):

ou seja, segundo estas concepções a poesia resulta da vida do poeta, o que é extremamente mutilador das qualidades pessoais de qualquer poeta que seja visto nesta perspectiva. O poeta pobre, ou com uma vivência pobre, fará, assim poesia pobre. Veremos, quando chegar a altura a preocupação de Fernando Pessoa quanto a estes aspectos. ( Entretanto pode dar uma vista de olhos mas se quiser regressar aqui deve fazer back no topo do browser).

A inversa, ou seja, reconhecer que não há poesia pobre ou que esta não é poesia impõe-se desde logo e como evidência. Assim, todos aqueles que fizeram poesia que perdura ( porque é rica / boa ) tiveram uma vivência rica.

O caso mais exemplar aqui será o de Fernando Pessoa, que, por não ter uma vivência rica e ter construído boa poesia ( a par de outra que não vale nada ou pouco vale ) acabou por ter não uma vivência rica ( que não teve: dificilmente se encontrará alguém tão sem interesse pessoal de vivência como Fernando Pessoa ) mas por incorporar vivências que enriquecia.

Quando se falar de Fernando Pessoa compreender-se-á melhor porque colocamos aqui esta questão de uma forma tão desenvolvida ( ou mais desenvolvida do que aparentemente mereceria ). A conclusão pudemos dizê-la desde já : o mito pessoano ( e sobretudo o mito de heteronomia ) persegue qualquer estudo que se faça sobre a poesia em Portugal...e lá, para além das palavras que muitas vezes se escrevem está uma referência quase obrigatória a este poeta ( que é excelente, diga-se de passagem e para retirar dúvidas sobre a nossa opinião ).

Mas não pensamos que seja justo aferir a qualidade ou a validade de outros poetas tendo como instrumento de medida Fernando Pessoa ou outra pessoa qualquer.

Ora, o mesmo autor deste ensaio fez um pequeno ensaio  / crítica sobre um outro poeta  que se encontra igualmente nestas páginas (Francisco Arcos) sem saber absolutamente nada da sua vida pessoal, e pelo feedback que tem recebido, parece não se ter saído muito mal...

O mesmo ( ou seja, trabalhar sem citações biográficas ) já não pode o pobre autor fazer em relação a Florbela, até porque a maior parte das referências que existem sobre ela fazem referência à sua vida pessoal: para obstar à queda no mesmo precipício redutor da anexação da sua poesia à sua vida resolveu o autor servir-se dessas referências pessoais inultrapassáveis filtrando-as segundo a sua consciência.

O trabalho é longo: neste momento vão-se publicando partes de um todo inacabado que tanto pode resultar em mais seis partes como em mais vinte, e vão-se intercalando algumas notas e explicações, pelo que optámos pela divisão em capítulos no tipo hipertexto. Existe uma coerência interna a cada capítulo e uma coerência exterior a cada capítulo que se repercute no todo do trabalho.

A sub - ordenação e a sub - referenciação vêm em seguida, ou seja, à medida que vamos folheando textos ( o que pode parecer não ser a metodologia ideal mas que parece resultar) fazendo-se neste momento uma sucessão de partes, ligadas entre si, mas com alguns "cortes" nas temáticas com derivações para aspectos que vão aparecendo pontualmente.

Para um melhor esclarecimento do que dissemos atrás devemos dizer que conhecemos suficientemente a Obra de Florbela Espanca, mas como a experiência nos tem demonstrado existe um número considerável de textos em livros e nas páginas na Net ( Florbela tem pelo menos centenas de páginas na Net que lhe são dedicadas, na sua maior parte oriundas do Brasil) que tornam útil este sistema que temos vindo a seguir:

vamos focando dados aspectos e vamos acrescentando quer à margem quer no corpo do próprio texto aquilo que formos encontrando que se aplique a um dado ponto do discurso. O trabalho será sempre um trabalho inacabado...como aliás parecem ser inacabáveis os textos que vamos lendo sobre Florbela e as páginas que a esta poetisa vão sendo dedicadas na Net.

O ideal, sabemo-lo bem, teria sido fazer primeiro tudo devidamente ordenado mas tal é não só impossível como pouco conveniente dado o risco de nos quedarmos por interpretações que o tempo vai ultrapassando. Por exemplo Florbela é definida por muitos autores como feminista ou como antecessora do feminismo literário em Portugal. Ora a nosso ver (e nesse aspecto estamos bem acompanhados, ainda que dubiamente, por Jorge de Sena) a literatura feminina tem conotações negativistas tal como o tem a literatura dita masculina. Como Jorge de Sena dizemos que a literatura é assexuada.

No plano técnico, enveredar pelo sistema de fazer notas de pé de página ( que quase ninguém lê ) é também uma solução a afastar. Seguir o sistema do hipertexto, já suficientemente implantado na Net e nos hábitos de leitura dos internautas,  com ligações a aspectos bem determinados, é quanto a nós a solução.

Mas tentou o autor ( também na medida das possibilidades que a Web exige - textos não muito longos ) fazer um conjunto de textos que podem simultaneamente ser lidos individualmente ou em seguimento...

É costume pedir desculpa pelas imperfeições pelo que não vamos deixar de o fazer também...

Daniel Teixeira

 

"O significado do discurso não é simplesmente a mensagem conscientemente enunciada. Todo discurso é dito de uma determinada forma. Ele é regido por um como - que não é dito, que está nas entrelinhas, no pathos... É justamente aqui, ao nível do não - articulado, que se encontra o sentido do discurso".

Kierkegaard

FACTORES ECONÓMICOS, SOCIAIS E PSÍQUICOS NO TEMPO DE FLORBELA

No período vivido por Florbela Espanca assistimos, em termos sócio económicos sobretudo no período final do Sec. XIX e início do Sec. XX a uma sequência de grandes movimentos de expansão industrial e mercantil (potenciados de alguma forma pelas recentes descobertas científicas) e ainda à crise dos confrontos produtivos com reflexos em todo o tecido social.

A sociedade dominada pelo feudalismo, vencido nominalmente e politicamente mas ainda presente em termos ideológicos e culturais sobretudo em meios rurais e nas próprias cidades rurais onde o impacto da industrialização e da ideologia do capitalismo ainda se fazia sentir de uma forma fraca, (ver que a própria Florbela como ser vivente resulta de um costume feudal - sancionado pela burguesia - de concubinagem) trabalhava, o feudalismo e a sociedade mercantil, com pequenas produções ou com produções tendencialmente ajustadas às necessidades.

Os termos actualmente bem conhecidos da lei da oferta e da procura eram de certa forma pouco potenciados na sua interligação dialéctica: o objectivo da oferta era, melhor ou pior, satisfazer a procura e sob capa desta trabalhava. O capitalismo e a produção em série inverteram progressivamente os termos de forma a fazerem moldar a procura aos ditames da oferta. Nascia assim, paulatinamente, ao longo de todo este período a parte mais agressiva da sociedade empurrada para o consumo e assistia-se também à reformulação dos conceitos da necessidade até aí arreigados ao ser biológico e expandia-se o conceito do supérfluo na sua margem extrema ao mesmo tempo que se reduzia esse mesmo conceito pelo galgamento do necessário na sua margem interior. (Ver análise económica mais detalhada )

A propriedade fundiária assentava em sistemas de exploração avessos às novas tecnologias baseando os seus processos exploratórios na mão-de-obra e em processos de exploração extensiva. Junto com os proprietários uma parte substancial da população campesina ou das pequenas cidades rurais começava a dividir-se entre a recusa da introdução das novas tecnologias que não só não dominavam como faziam reduzir o espaço de emprego de mão-de-obra e inversamente assistiam à circulação da informação sobre melhores salários e apesar de tudo melhores condições de trabalho e vida nos núcleos industrializados.

Os novos sistemas económicos capitalistas destacavam-se pois por tentarem desbravar não só métodos de produção em série e novos sistemas de exploração dos solos com vista à intensivação dessas mesmas explorações, assim como, por mera relação causal, se preocupavam em arranjar mercados para essas produções. A relativa autonomia do meio rural para satisfação das suas necessidades (ainda hermeticamente relapsas ao produto citadino ou industrial) funcionava ainda como uma travão ao desenvolvimento do capitalismo e à conquista de novos mercados, na proporção da sua importância no globo social.

Ora tudo isso levara a que os ideais burgueses da Igualdade, Liberdade e Fraternidade lançados em 1789 fossem paulatinamente absorvidos por conceitos que levavam à fuga em frente. A Inglaterra, através da sua Revolução Industrial tinha sido um excelente laboratório social e o destroçar brusco da economia rural resultara na migração maciça dos trabalhadores rurais, criando excedentes populacionais nas cidades industriais excedentes esses para os quais não havia sido encontrada resposta localizada.

As franjas encontradas em Portugal que vieram a sofrer efeitos directos destas contradições sociais aumentavam na proporção directa da falta de posse da terra. As zonas do latifúndio, como era o caso do Alentejo, foram seguramente aquelas que mais cedo começaram a sentir os afeitos adversos da nova economia.

Ora o capitalismo em expansão precisava não só de mão-de-obra mas precisava também de consumidores para os produtos da sua indústria, como já vimos. A colonização efectiva (e não a mera ocupação militar territorial até aí muito seguida) aparece então como elemento indispensável para elevamento do poder de compra dos assalariados: uma fatia substancial dos mais baixos preços pagos pela matéria-prima conseguida nas colónias podia servir quer para o abaixamento do preço dos produtos industriais quer para um reforço necessário do provento e extensão da massa salarial empregue, com vista ao aumento do seu consumo per capita, ao mesmo tempo que colocava a necessidade de colonizar efectivamente os territórios ultramarinos de forma a conseguir pelo menos um enquadramento técnico mínimo dos processos produtivos nas colónias.

Esta situação e a incerteza dos novos mercados consumidores (ainda em difícil gestação) originaram nesse campo uma economia aos solavancos (a períodos de grandes excedentes produtivos seguiam-se períodos de escassez recessiva) que, naturalmente fundamentavam as contestações também quantitativamente sincopadas de algumas classes esmagadas pelo progresso do capitalismo industrial nomeadamente em meio rural.

Sobre a consciência desta situação confusa e sobre a necessidade de evasão ou sonho ou de irrealidade que encontramos em Florbela e outros poetas que iremos referindo ao longo deste trabalho, ver um estudo de Fernando Pessoa.

Não conseguimos saber, através dos meios explorados, qual a actividade ou qual a origem e possível quantitativo dos proventos dos Espanca, mas, sendo Vila Viçosa uma cidade alentejana e sendo extremamente fácil fazer a divisão entre pobres e ricos nesta região (os pobres eram extraordinariamente pobres e os ricos iam desde a pequena burguesia mercantil ou mesmo funcionária pública até aos grandes proprietários absentistas) arriscamos considerar que, pelo menos, os Espanca estariam situados num estrato económico situado algures acima dos actuais 500 / 750 contos mensais (2500 euros a 3750 euros) com largas possibilidades de alargamento para valores dobrados ou superiores isto tendo em conta a necessidade premente que a família Espanca tinha de produzir herdeiros. ( Sobre esta questão, e em desenvolvimento separado, anexamos aquilo que consideramos ser as mais credíveis biografias de Florbela até nós chegadas ). (Mas a busca continua e está a tornar-se cada vez mais interessante).

Sobre este aspecto interessa desde logo frisar que enquanto que Florbela poderia ter sido um "acidente" numa relação de concubinagem essa hipótese se torna remota não só pelo aparecimento de um segundo rebento na relação (Apeles Espanca nascido a 10 de Março de 1897) como também pelo facto de que nada obrigava os Espancas a receber Florbela e o seu irmão no lar familiar dos Espancas. O nascimento de Florbela como primogénita vem a fundamentar, ainda que de forma que reconhecemos especulativa, o nascimento de seu irmão Apeles, afinal o potencial continuador da linhagem segundo o patriarcalismo vigente.

O facto da mãe uterina de Florbela ter abandonado Vila Viçosa e se ter estabelecido em Évora já com uma nova relação afectiva poderá ter sido factor precipitador do acolhimento de Florbela e seu irmão, mas certo também nos parece ser que, sendo a relação entre o João Maria Espanca e a Antónia da Conceição Lobo de conhecimento geral ou comum, o problema dos herdeiros estava resolvido à luz do Direito então (e agora) vigente.

Há alguma confusão nas fontes que consultámos sobra a data do baptismo de Florbela ( aos seis meses de idade ) sabendo-se que os filhos ilegítimos e mesmo os filhos de pais não casados pela Igreja têm alguma dificuldade em serem baptizados, mas como se tratava de um meio relativamente pequeno é bem provável que tal falha tenha sido suprida. Ao mesmo tempo é pouco crível que a Antónia da Conceição Lobo, ainda que de "baixa condição social", como se diz no que temos lido, tenha aberto imediatamente mão dos seus filhos para os mesmos serem educados por uma outra mãe adoptiva ( neste caso ). É mais crível que tal tenha acontecido quando a mesma Antónia refez a sua vida deslocando-se então para Évora, em data sempre posterior ao ano de 1897, ano do nascimento de Apeles, ou seja quando Florbela tinha, pelo menos, três anos uma vez que nasceu em Dezembro de 1894.

Mas não nos parece relevante esta situação senão no aspecto em que Florbela refere "nem sequer se lembrar da cor dos cabelos da mãe uterina" o que pelo menos denuncia que a mesma não terá ido imediatamente após o seu nascimento viver para casa dos Espanca, e sabe-se que as crianças não guardam recordações desligadas até aos três anos de idade. De qualquer forma, e como existe toda uma mitologia à volta da vida de Florbela Espanca não seremos nós que a iremos pôr em causa e muito nomeadamente a exploração do "alegado costume feudal" que permitia que o marido de mulher estéril viesse a fazê-los conceber em mulher de humilde condição.

O que havia, isso sim, era o chamado direito à concubina, expresso no Código Napoleão de 1810, em que a mesma ( concubina) era equiparada à esposa legítima no que se refere aos direitos de assistência pessoal e alimentação, sendo os filhos comuns (bastardos) equiparados em termos de direitos de herança sobre os haveres do pai e a relação permitida ( e tolerada pela sociedade, da forma problemática que reconhecemos aqui ter existido ) da mesma forma que o eram as uniões de facto definidas por Herculano como " relação continuada e publicamente conhecida" sem sanção matrimonial quer civil quer pela Igreja.

Aliás tanto assim era (e é) que o seu pai acabou por perfilhá-la 19 anos ( outras fontes referem 10 anos ) depois dela ter falecido (em 1949 ou em 1940 respectivamente) e segundo se diz apenas para receber os direitos autoriais da sua obra. A sua habilitação como pai seria a mesma (como filha) que Florbela (ou Apeles) teriam de seguir caso o falecimento do pai precedesse o seu. Critica-se ao pai Espanca o facto de o mesmo não ter procedido ao perfilhamento de Florbela ( e de Apeles ao que se supõe ) mas terá de considerar-se que tal facto implicava uma relação de cordialidade com a mãe uterina de ambos os Espancas filhos que provavelmente não existia na altura. Trata-se de uma mera suposição lógica. Não temos mais noticias sobre a mãe uterina de Florbela e Apeles Espanca mas o facto de ele ( João Maria Espanca) a ter perfilhado tão tardiamente pode ter a ver com o relacionamento conturbado entre ambos após a partida de Antónia para Évora com nova relação ( marital ou de concubinagem ).

Contudo o já actualmente retirado termo de " filho de pai incógnito " ou "bastardo" não deixava de ser um labéu pesado sobretudo em sociedades rurais em que os meios e as relações interpessoais se regulavam em círculos mais ou menos restritos. Florbela não fala desta sua situação, pelo menos de forma directa, mas sabe-se perfeitamente que terá sentido na pele essa rejeição, e não será difícil calcular que se o seu comportamento pessoal fosse menos expansivo era bem provável que viesse a sentir menos os efeitos e os reflexos da crítica tradicionalista paradoxalmente hipócrita.

O facto de se ter comportado sempre ( ou quase sempre ) como filha legitima, afastando-se do recato e da clausura que o meio social envolvente seguramente exigia, terá assim contribuído para um exacerbar do seu individualismo e do seu egotismo. Existirá também, será justo reconhecer, algum bascular psicológico neste campo da filiação legitima e da ilegítima. Em rigor, parece-nos que ao longo da poesia de Florbela este problema está tão presente que Florbela se vê de alguma forma forçada a "negociar" consigo mesma frequentemente o seu estatuto nesta cadeia, ao ponto de, por exemplo, envolver de culpa ( numa tentativa de diluir aquela que sente ) a origem do seu problema neste campo, a sua mãe:

"Ó Mãe! Ó minha mãe, pra que nasceste?

Entre agonias e em dores tamanhas

Pra que foi, dize lá, que me trouxeste

 

Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido

Somente o fruto amargo das entranhas

Dum lírio que em má hora foi nascido!..."

 

(In Deixai entrar a Morte ).

 

"Tenho a impressão nítida de ter vindo de longe cumprir a pena do crime de ter nascido (…)" diz Florbela numa das suas enunciações do pecado original. Mas diz também Florbela, nessa sua busca frenética da afirmação da sua identidade e do seu egotismo: "(…) Há quem suba a descer. Há almas privilegiadas e únicas que nada têm a ver com a lógica absurda das leis humanas (…) À gargalhada insultante deste mundo responde a infinita serenidade do que fica para Além e que os olhos míopes não vêem (…)". Pudemos reparar aqui, no primeiro extracto numa repetição que é utilizada na poesia de Florbela (o suplício / mito de Sísifo visto no sentido inverso, ou seja, não se trata de subir a montanha arrastando a pedra mas sim de descê-la).

Na segunda citação, de desprezo, não pode contudo afastar-se a ideia de alguma mágoa por não ser aceite. Mágoa esta que Florbela reforça através do reforço do seu egotismo, com bastantes semelhanças, aliás, com o seu declarado ídolo Anto (António Nobre), numa "tradição" turbulenta e esbracejante que vinha já desde Bocage ( e mesmo de Camões).

Torna-se útil um ligeiro reparo ao mito de Sísifo tal como ele foi desenvolvido posteriormente por Albert Camus:

O MITO DE SÍSIFO

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

A acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e o mais prudente dos mortais. No entanto, segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a menor contradição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser o trabalhador Inútil dos Infernos. Censura-se-lhe, de início, certa leviandade para com os deuses. Revelou os segredos deles.

Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo. Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia, com a condição de ele dar água à cidadela de Carinto. Aos raios celestes, preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos Infernos. Homero conta-nos também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o espectáculo do seu Império deserto e silencioso. Enviou o deus da guerra, que soltou a Morte das mãos do seu vencedor. Diz-se ainda que, estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher.

Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Foi necessário uma ordem dos deuses. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto.

Já todos compreenderam, que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos Infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime.

Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.

É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência.

Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo. Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo.

Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.

Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é de mais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece que a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo.

O imenso infortúnio é pesado de mais para se poder carregar. São as nossas noites de Gethsemani. Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas. Assim, Édipo obedece de início ao destino, sem o saber. A partir do momento em que sabe, a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego e desesperado, ele reconhece que a único elo que o prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem. Uma frase desmedida ressoa então: "Apesar de tantas provações, a minha idade avançada e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo está bem". O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de Dostoievsky, dá assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.

Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. "O quê, por caminhos tão estreitos?...". Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade.

"Acho que tudo está bem", diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está perdido, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores Inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens.

Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhadas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória.

Não há sol sem sombras e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante subtil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa sequência de acções sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

In: CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo. Lisboa, Livros do Brasil.

Lendo com alguma atenção não teremos grande dificuldade em encontrar a Florbela / Sísifo neste texto de Camus. Ela e a sua pedra que arrasta e sustém, não na subida, como se disse atrás, mas na descida da montanha que é a sua vida. O alegre, a felicidade está na subida, que é para ela afinal a morte, a subida a um Além pacificador e apaziguador: por isso (e ao contrário do Sísifo de Camus) é preciso imaginar Florbela infeliz.

Afinal ela é uma flor perdida num canteiro profundamente tradicionalista e religioso mas do qual, nem na sua ideia da morte como "mundo melhor" consegue libertar-se. Restará sempre o facto de contrariar esse fado provocando-a ela mesma…e tal como o Édipo acima citado por Camus, lá, no Além, ela poderia ter afirmado: "Apesar de tantas provações, (…) a grandeza da minha alma faz-me achar que, AGORA, tudo está bem".

( Continua )

Texto e recolha de Daniel Teixeira

regressar ao topo da página

regressar à homepage

 

O PARNASIANISMO DE FLORBELA ESPANCA

Segundo António José Saraiva e Óscar Lopes na sua história da Literatura portuguesa Florbela Espanca é uma sonetista com laivos parnasianos no plano estético, ( parnasianismo este de que Olavo Bilac é um dos mais explícitos cultores e teorizadores). Em termos puramente literários esta corrente é uma corrente charneira que serve de voz (ou é utilizada formalmente como voz) de todo um conjunto de autores que tem em comum não só a prática de um dado mundo estético / temático mas também um percurso intelectual e criador comum em muitos aspectos.

O que pode aqui parecer uma redundância vazia de sentido serve-nos no entanto para afirmar e fazer ressaltar a parte da frase que diz:"(…) é parnasiano o (…) conjunto de autores que tem em comum não só a prática de um dado mundo estético / temático mas também um percurso intelectual e criador comum em muitos aspectos." Este aspecto é importante, e seria importante qualquer que fosse a corrente estética em causa, porquanto muito pouco se sabe sobre as influências culturais e literárias de Florbela Espanca.

As referências encontradas amiúde no seu diário são, nalguns casos indetectáveis ou de difícil procura, caso de Delarne-Mardrus em "La monnaie de Singe" – Florbela Espanca- Contos e Diário – Publicações D. Quixote, ISBN: 972-20-1884-1, Setembro de 1985 e Outubro de 2000, Diário, 2 de Maio de 1930 ou Delarme-Mardrus- Promoclube, Amigos do Livro Editores, Ldª, sem data, Diário, 2 de Maio de 1930, onde a preocupação dos editores ( e dos inúmeros introdutores ) nem parece ter-se debruçado sobre as incorrecções do nome da autora que Florbela cita desta maneira:

"Maio 1930-2: La monnaie de singe, de (Delarne-Mardrus, Delarme-Mardrus conforme as edições que referimos), encantou-me, positivamente: sem ser, de maneira nenhuma uma obra-prima é um livro adorável. À parte da sua estrutura um pouco frágil, os seus exageros, o seu tom um pouco forçado de demonstração, é realmente qualquer coisa de bom.

A sua "petite fille toute en or", longínqua como um ídolo, é um magnífico pretexto para magníficas páginas cheias de coração e de graça. " La jalousie et la haine sont des formes de l’hommage. C’est un encens amer, mais le plus précieux des encens, celui que les médiocres ne connaîtront jamais ».

Como é verdade ! Este livro tem para mim o valor de me ter debruçado sobre a minha alma de rapariga. Lembro-me dela ter sido, dantes, um pouco, a alma corajosa e bravia, terna e inquieta duma petite fille toute en or. E tembém a mim, foi sempre em monnaie de singe que a esmola da ternura me foi dada…"

Trata-se, neste texto, de um livro impossível de encontrar nas diversas pesquisas que fizemos sob este título, da autoria logicamente inquestionável de DELARUE-MARDRUS, Lucie (Honfleur 1880-Château-Gonthier 1945). Juntamos por ora um pequeno texto em francês referindo a autora guardando para depois um maior desenvolvimento nos aspectos que esta referência despoleta, nomeadamente o facto de Lucie Delarue Mardrus ter sido uma feminista que terá em muito contribuído para a ideia da literatura no feminino, ao mesmo tempo que lhe são apontadas tendências lésbicas.

Deixamos no entanto desde já um pequeno poema desta autora, igualmente em francês, e remetemos três poemas desta autora para anexo:

 

Sonnet des échecs.

 

Invite aux tours de passe-passe,

L'échiquier quadrillé reluit.

Il n'y a qu'une étoile pour lui,

Le Roi, ce monarque fadasse.

.../...

Mais seule, allant de bout en bout,

En ce très vieux jeu féministe,

La Dame rayonne partout.

 

Lucie Delarue-Mardrus - Souvenirs et rêveries

 

Voici ce qu’en dit Liane de Pougy dans Ses Cahiers Bleus (19 sept 1932, p 280) « Lu un article assez joli sur Lucie Delarue-autrefois Mardus. Elle est adorable, enfantine, oui, elle a de grands regards bien ouverts qu’elle pose sur vous avec ardeur et étonnement.

Peu faite pour les choses pratiques de la vie elle s’en tire cependant très bien grâce à son talent qui la rend indépendante et à son amour du travail. Elle est humaine dans le joli sens du mot, a su réunir autour d’elle quelques dévouements et les êtres qui lui sont doués et dévoués elle sait les rendre parfaitement heureux. Elle publie trois romans par an, en feuilletons d’abord puis en volumes.

Vous la croyez en train de donner des conférences en Europe centrale et vous apprenez qu’on l’a applaudie à Barcelone (e no Brasil, acrescentamos nós). Elle sculpte, monte à cheval, aime une femme puis une autre, et encore une autre.

Elle a – heureusement - pu se libérer de son mari et depuis cette expérience n’a jamais entrepris un second mariage ni la conquête d’un autre homme ».

 

Mas, e regressando ao parnasianismo. A estreia de Olavo Bilac deu-se com o volume Poesias (1888). O parnasianismo já estava firmado no Brasil desde o começo da década de 1880. A "ideia nova", que a geração de 1870 adoptara como credo filosófico e estético, e que fora identificada por Machado de Assis no ensaio "A nova geração", transformara-se em opção consagrada, e seus dois maiores representantes, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, ampararam e saudaram o estreante Olavo Bilac. O livro continha o grupo de sonetos da Via-Láctea, que se tornariam dos mais famosos da poesia brasileira, e a "Profissão de fé", em que se codifica o credo parnasiano, pelo culto da pureza formal e da correcção do verso.

De acordo com tais cânones, Bilac tornou-se o cinzelador dos sonetos talvez mais perfeitos da língua, na tradição de Bocage, com decassílabos rigorosos, imagens sóbrias, riqueza métrica, de suma elegância e sonoridade, que conquistam o leitor sobretudo por se aliarem a um sensualismo ardente, óbvia impregnação das teorias realistas.

( Nota: se quiser ler o Tratado de Versificação de Olavo Bilac carregue aqui).
 

Olavo Bilac

Língua Portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lira singela,

Que tens o trom e o silvo da procela

E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"

E em que Camões chorou, no exílio amargo,

O génio sem ventura e o amor sem brilho!

 

Este poema de Olavo Bilac poderia muito bem ser emparelhado a alguns de Bocage, pelo que achamos útil fazer aqui algumas referências a Manuel Maria Barbosa Du Bocage, socorrendo-nos em primeira fonte de António José Saraiva e Óscar Lopes:

" (…) A arte versificatória (de Bocage) sobretudo o soneto, tem tido muitos admiradores, entre os quais se destaca o parnasiano brasileiro Olavo Bilac. (…) O que o distingue melhor é a matéria psicológica que traz pela primeira vez à poesia portuguesa: o sentimento agudo da personalidade, o horror do aniquilamento na morte. (…)"

De reparar aqui, a este tema voltaremos as vezes que tal se torne necessário, que existe já neste iniciar de corrente psicológica, uma negação ainda que ténue do regresso à terra (feitura em pó difundido pela religião) e a referência a um desejo de imortalidade, que atravessa todos os séculos mas que aqui se reveste de características muito específicas.

Não se aceita a ressurreição pura e simples do cristianismo imperante, mas sim uma continuidade imediata da vida ainda que sob forma não física. O medo da morte só existe se ela não representar algo que continua de forma imediata para além dela, ou seja, um renascimento ainda que o processo implique uma redução transitória ao nada. E esta problemática encontra-se expressa um pouco em toda a escrita de Florbela Espanca ( especialmente nas suas referências à Fénix ).

Continuando com Bocage…"(…)Tal egotismo percebe-se ainda na maneira abstracta e retórica com que, em nome da Razão, se revolta contra a humilhação da dependência e contra o despotismo; no gosto do fúnebre e do nocturno, e nos clamores não menos retóricos de ciúme, de blasfémia ou contrição…) Esse gosto tão romântico do funéreo e tenebroso percorre grande parte da poesia de Bocage.(…) Não se sabe em que medida isto é simples saborear de uma estética (dantesca, shakespeariana, e, então, romântica) do locus horrendus que vira do avesso o locus amoenos do pastoralismo clássico; em que medida o poeta é efectivamente presa de uma obsessão irracional incontrolável, uma espécie de pavor sagrado à procura de imagens; ou em que medida isso traduz uma ânsia, ao mesmo tempo inextinguível e medrosa, de abarcar numa consciência humana todos os medos e dores que ela, espontaneamente, evita, que ela mal enfrenta sem se desagregar. (…) O egocentrismo de Bocage, manifestado em constantes vocativos a Elmano, ao Desgraçado, em constantes pronomes na primeira pessoa, na sua confiança em renome póstumo, no próprio auto-retrato do famoso soneto " magro, de olhos azuis, carão moreno" e de outras poesias (…)"

Fazemos aqui referência um aspecto igualmente recorrente numa parte substancial dos poetas e autores desta corrente psicológica: O renome póstumo. Este aparece talvez como a última forma possível de continuidade para além da morte, mas seria demasiado fácil aceitar-se que o objectivo profundo de tal reclamação seja exclusivamente ou só isso mesmo.

Vendo o Diário de Florbela do dia 24 de Janeiro de 1930 encontramos esta referência:

"(…)O Diário de Maria Bashkirtseff é qualquer coisa de profundamente triste, de tragicamente humano. Só não compreendo naquela grande alma o medo da morte. O espectro da morte, a ideia da morte, apavora-a, espanta-a, indigna-a. É a sua única fraqueza :"Il faudra donc mourir, misérable. Mourir ? J’en ai très peur…Et je ne veut pas…Je veux vivre, moi, quand même et malgré tout…Mon corps pleure et crie mais quelquer chose qui est au-dessus de moi, se réjouit de vivre, quand même… »

Mas que imensa alma ! Queria o amor, queria a glória, o poder, a riqueza, queria a felicidade, queria tudo. E morreu com pouco mais de vinte anos, gritando até ao fim que não queria morrer.

Como não compreendeu ela que o único remate possível à cúpula do seu maravilhoso palácio de quimeras, de ambições, de amor, de glória, poderia apenas ser realizado por essas linhas serenas, puríssimas, indecifráveis, que só a morte sabe esculpir?

Os seus vinte anos não chegaram a compreender o alto e supremo símbolo das mãos que se cruzam, vazias dessa maré de sonhos que a vida, amargo fluxo e refluxo, leva e traz constantemente.

Princezinha exilada, porque não soubeste tu murmurar, encolhendo os ombros, o teu doce e sereno "nitechevo" de estalava?"(…)"

Contudo, o que se assiste aqui é a uma interpretação (provavelmente motivada por edições pouco fiéis do Diário de Maria Bashkirtseff que só nos anos 60 deste século foram devidamente depuradas) que realçam a chamada fase da recusa da mesma artista confrontada com a tuberculose incurável na época, desvanecida esta ideia por afirmações posteriores da mesma onde se nota, não propriamente um elogio da morte (ou do estado de morte) como o faz Florbela, mas sim a uma aceitação da inevitabilidade e o desejo de ficar conhecida (para além da morte) quanto mais não seja através das afirmações contidas no seu diário. De qualquer forma não deixa de ser sintomático que a observações de Florbela se debrucem preferencialmente (com edição menos clara ou não dos Diários de Maria Bashkirtseff) sobre este plano que lhe é tão caro, a morte familiar, a morte familiarizada, a morte companheira.

" (…) Em Agosto de 1928, cerca de um ano depois da morte do irmão, Florbela Espanca tenta suicidar-se. Segue-se uma segunda tentativa de suicídio em Novembro de 1930. No dia 8 de Dezembro desse mesmo ano, no dia do seu aniversário (já o seu casamento se havia realizado nesse mesmo dia) foi encontrada morta num quarto em Matosinhos. Debaixo do colchão foram encontrados dois frascos de Veranol, ou seja do farmáco que tomava para conseguir dormir (…)".

Florbela fez assim duas tentativas conhecidas de suicídio e acabou por falecer cerca de um mês depois da sua segunda tentativa de suicídio. Nos tempos modernos a ideação suicida e a patologia que lhe estava agregada teria sido detectada por qualquer médico ou psiquiatra.

Contudo também para Maria Bashkirtseff a morte não será nunca o nada…poderá sim ser o pouco uma vez que ela nunca saberá que foi precisamente a publicação do seu diário que a tornou conhecida muito para além da sua obra com artista.

(…)"Je meurs, c'est logique, mais horrible. Il y a tant de choses intéressantes dans la vie!"

"À quoi bon mentir ou poser? C'est évident que j'ai le désir sinon l'espoir de rester sur cette terre par quelque moyen que ce soit. Si je ne meurs pas jeune, j'espère rester une grande artiste, mais si je meurs jeune, je vais permettre de publier mon Journal qui ne peut être moins qu'intéressant". (…) In Diário de Maria Bashkirtseff .

Contudo, e regressando a Olavo Bilac, o espírito e o cuidado da poética que fundamenta o espírito e a prática do parnasianismo são declaradamente expressos neste clássico a que sugestivamente é dado o nome de Profissão de Fé:

PROFISSÃO DE FÉ

Le poète est cise1eur,

Le ciseleur est poète.

Victor Hugo.

 

Não quero o Zeus Capitolino

Hercúleo e belo,

Talhar no mármore divino

Com o camartelo.

Que outro – não eu! - a pedra corte

Para, brutal,

Erguer de Atene o altivo porte

Descomunal.

 

Mais que esse vulto extraordinário,

Que assombra a vista,

Seduz-me um leve relicário

De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo

Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara

A pedra firo:

O alvo cristal, a pedra rara,

O ónix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,

Sobre o papel

A pena, como em prata firme

Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,

A ideia veste:

Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem

Azul - celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima,

Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,

Dobrada ao jeito

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,

Por tão subtil,

Possa o lavor lembrar de um vaso

De Becerril.

E horas sem conto passo, mudo,

O olhar atento,

A trabalhar, longe de tudo

O pensamento.

Porque o escrever – tanta perícia,

Tanta requer,

Que oficio tal... nem há notícia

De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena

Segue esta norma,

Por te servir, Deusa serena,

Serena Forma!

Deusa! A onda vil, que se avoluma

De um torvo mar,

Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma

Deixa-a rolar!

Blasfemo> em grita surda e horrendo

Ímpeto, o bando

Venha dos bárbaros crescendo,

Vociferando...

Deixa-o: que venha e uivando passe

- Bando feroz!

Não se te mude a cor da face

E o tom da voz!

Olha-os somente, armada e pronta,

Radiante e bela:

E, ao braço o escudo> a raiva afronta

Dessa procela!

Este que à frente vem, e o todo

Possui minaz

De um vândalo ou de um visigodo,

Cruel e audaz;

Este, que, de entre os mais, o vulto

Ferrenho alteia,

E, em jacto, expele o amargo insulto

Que te enlameia:

É em vão que as forças cansa, e à luta

Se atira; é em vão

Que brande no ar a maça bruta

A bruta mão.

Não morrerás, Deusa sublime!

Do trono egrégio

Assistirás intacta ao crime

Do sacrilégio.

E, se morreres por ventura,

Possa eu morrer

Contigo, e a mesma noite escura

Nos envolver!

Ah! ver por terra, profanada,

A ara partida

E a Arte imortal aos pés calcada,

Prostituída!...

Ver derribar do eterno sólio

O Belo, e o som

Ouvir da queda do Acropólio,

Do Partenon!...

Sem sacerdote, a Crença morta

Sentir, e o susto

Ver, e o extermínio, entrando a porta

Do templo augusto!...

Ver esta língua, que cultivo,

Sem ouropéis,

Mirrada ao hálito nocivo

Dos infiéis!...

Não! Morra tudo que me é caro,

Fique eu sozinho!

Que não encontre um só amparo

Em meu caminho!

Que a minha dor nem a um amigo

Inspire dó...

Mas, ah! que eu fique só contigo,

Contigo só!

Vive! que eu viverei servindo

Teu culto, e, obscuro,

Tuas custódias esculpindo

No ouro mais puro.

Celebrarei o teu oficio

No altar: porém,

Se inda é pequeno o sacrifício,

Morra eu também!

Caia eu também, sem esperança,

Porém tranqüilo,

Inda, ao cair, vibrando a lança,

Em prol do Estilo!

 

Ora, o parnasianismo, com o seu cinzelado formal e aparecendo como reacção ao romantismo é, desde logo, uma estética de elite para elites, donde se destaca desde logo também da poética de Bocage acusada, apesar do seu hermetismo formal e temático, de se afastar o suficiente do elitismo formal ( caindo por vezes na rua, que é, nesta época, o Romantismo ). ( Sobre o elitismo ver a opinião de Fernando Pessoa).

Florbela Espanca, não tão aprimorada como Bilac é, de facto uma cultora da forma. Urbano Tavares Rodrigues aponta-lhe algumas rimas forçadas...mas os seus versos,  por exemplo, são todos decassilábicos o que não quer dizer muito mas serve como exemplo da existência de algum rigor formal na sua escrita e serve mesmo de informação sobre o facto de Florbela não sofrer de uma Depressão bipolar ( vulgo maníaca - depressiva ). O rigor da forma é incompatível com esta patologia...

Aliás, Nuno Júdice, referindo-se a este facto, ao formalismo Florbeliano, diz:" Florbela adopta um modo de expressão, o soneto decassilábico, consagrado por um uso que vai de Camões até Antero de Quental – o que torna tanto mais excepcional o seu caso, uma vez que ela consegue, de facto, revitalizar esse género poético."(…)

Sobre as análises de Nuno Júdice e de outros que sobre Florbela se debruçaram neste aspecto da revitalização do género decassilábico na sonetística falaremos mais, mais tarde….

Daniel Teixeira

regressar ao topo da página

regressar à homepage

continuação

 

Ps: Alguns sites apresentam já uma sobrecarga de utilizadores ( que leva ao esgotamento pontual da margem de megabytes de manobra disponíveis ) pelo que aconselhamos a ter presente este link, que leva a uma lista de sites que, com algumas diferenças ( pequenas ) de actualização se encontram na rede com objectivos semelhantes, ou seja, fornecer aos nossos leitores uma variada temática gratuita.

 

 

 


UK Web Hosting

Desde 25 de Outubro 2003 e quando o contador Bravenet apresentava cerca de 72.500 visitas