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LISTA DE POETAS POR ORDEM ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME

E alegre se fez triste - Manuel Alegre

 

Aquela clara madrugada que

Viu lágrimas correrem do teu rosto

E alegre se fez triste como se

Chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos

Meu nome no teu nome. E demorados

Viu nossos olhos juntos nos segredos

Que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti.

Só ela viu teu rosto olhando a estrada

Por onde um automóvel se afastava.

E viu que a Pátria estava toda em ti.

E ouviu dizer-me adeus: essa palavra

Que fez tão triste a clara madrugada.

 

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Quadras - António Aleixo

 

Eu não tenho vistas largas

Nem grande sabedoria,

Mas dão-me as horas amargas

Lições de filosofia.

 

Há lutas por mil doutrinas.

Se querem que o mundo ande,

Façam das mil pequeninas

Uma só doutrina grande.

 

Da guerra os grandes culpados

Que espalham a dor da terra,

São os menos acusados

Como culpados da guerra.

 

Se os homens chegam a ver

Por que razão se consomem,

O homem deixa de ser

O lobo do outro homem.

 

Embora os meus olhos sejam

Os mais pequenos do mundo,

O que importa é que eles vejam

O que os homens são no fundo.

 

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Caixinha de música - Matilde Rosa Araújo

 

Grilo, grilarim,

Tens um canto azul

Na noite de cetim!

Cigarra, cigarraia,

Tens um canto branco

No dia de cambraia!

Formiga, miga, miga,

Só tu cantas os nadas

Do silêncio do Sol,

Das estrelas caladas...

 

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Loas à chuva e ao vento - Matilde Rosa Araújo

 

Chuva, porque cais?

Vento, aonde vais?

Pingue... Pingue... Pingue...

Vu... Vu...Vu...

Chuva, porque cais?

Vento, aonde vais?

Pingue... Pingue... Pingue...

Vu... Vu...Vu...

Ó vento que vais,

Vai devagarinho.

Ó chuva que cais,

Mas cai de mansinho.

Pingue... Pingue...

Vu... Vu…

Muito de mansinho

Em meu coração

Já não tenho lenha

Nem tenho carvão...

Pingue... Pingue...

Vu... Vu…

Que canto tão frio,

Que canto tão terno,

O canto da água,

O canto do Inverno...

Pingue...

Que triste lamento,

Embora tão terno,

O canto do vento

O canto do Inverno...

Vu...

E os pássaros cantam

E as nuvens levantam.

 

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O pardalzinho - Manuel Bandeira

 

O pardalzinho nasceu

Livre. Quebraram-lhe a asa.

Sacha lhe deu uma casa,

Água, comida e carinhos.

Foram cuidados em vão:

A casa era uma prisão,

O pardalzinho morreu.

O corpo Sacha enterrou

No jardim; a alma, essa voou

Para o céu dos passarinhos!

 

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Fábula - Bocage

 

Contam que certa raposa,

Andando muito esfaimada,

Viu roxos, maduros cachos

Pendentes de alta latada.

De bom grado os trincaria,

Mas sem lhes poder chegar,

Disse: "Estão verdes, não prestam,

Só os cães os podem tragar!"

Eis cai uma parra, quando

Prosseguia seu caminho,

E, crendo que era algum bago,

Volta depressa o focinho.

 

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O corvo e a raposa - Bocage

(tradução de La Fontaine)

 

É fama que estava o corvo

Sobre uma árvore pousado

E que no sôfrego bico

Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro, àquele sítio

Veio a raposa matreira,

A qual, pouco mais ou menos,

Lhe falou desta maneira:

- Bons dias, meu lindo corvo;

És glória desta espessura;

És outra fénix, se acaso

Tens a voz como a figura.

A tais palavras, o corvo,

Com louca, estranha afouteza,

Por mostrar que é bom solista

Abre o bico e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho

E diz: - Meu amigo, aprende

Como vive o lisonjeiro

À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo;

Tem destas para teu uso.

Rosna então consigo o corvo

Envergonhado e confuso:

- Velhaca, deixou-me em branco;

Fui tolo em fiar-me dela;

Mas este logro me livra

De cair noutra esparrela.

 

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A beleza - António Botto

 

A beleza

Sempre foi

Um motivo secundário

No corpo que nós amamos;

A beleza não existe,

E quando existe não dura.

A beleza

Não é mais do que o desejo

Fremente

Que nos sacode...

- O resto, é literatura.

 

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Não me peças mais canções - António Botto

 

Não me peças mais canções

Porque a cantar vou sofrendo;

Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo.

Se a minha voz conseguisse

Dissuadir essa frieza

E a tua boca sorrisse!

Mas sóbria por natureza

Não a posso renovar

E o brilho vai-se perdendo...

- Sou como as velas do altar

Que dão luz e vão morrendo.

 

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Rosa - Amílcar Cabral

 

Rosa.

Chamam-te Rosa, minha preta formosa,

E na tua negrura

Teus dentes se mostram sorrindo.

Teu corpo baloiça, caminhas dançando,

Minha preta formosa, lasciva e ridente

Vais cheia de vida, vais cheia de esperança

Em teu corpo correndo a seiva da vida

Tuas carnes gritando

E teus lábios sorrindo...

Mas temo a tua sorte na vida que vives,

Na vida que temos..

Amanhã terás filhos, minha preta formosa

E varizes nas pernas e dores no corpo;

Minha preta formosa já não serás Rosa,

Serás uma negra sem vida e sofrente,

Serás uma negra

E eu temo a sua sorte.

Minha preta formosa não temo a tua sorte,

Que a vida que vives não tarda a findar...

Minha preta formosa, amanhã terás filhos

Mas também amanhã...

... amanhã terás vida!

 

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Um dia - Papiniano Carlos

 

Um dia,

A menina

Gotinha de Água,

Vestida de esmeralda

E luar, estava a dormir,

A sonhar

A flor

Do mar.

Então,

O Sol

Beijou-a

Na face,

E logo ela

Como se voasse

Subiu no ar.

Como se sentia leve!

Subiu,

Subiu,

Subiu

Até que se viu

Numa nuvem

Cor-de-rosa.

 

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Cantiga, partindo-se - João Roiz de Castell-Branco (séc. XV)

 

Senhora, partem tam tristes

Meus olhos por vós, meu bem,

Que nunca tam tristes vistes

Outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,

Tam doentes da partida,

Tam cansados, tam chorosos,

Da morte mais desejosos

Cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes,

Tam fora d'esperar bem,

Que nunca tam tristes vistes

Outros nenhuns por ninguém.

 

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A Letra Q - Mário Castrim

 

Estou sempre muito longe.

Dizem qualquer coisa e eu pergunto:

- Quê?

Pergunto sempre:

- Quê?

Não sei porquê.

O meu amigo V

Zanga-se e diz:

És surdo ou quê?

E eu repondo sinceramente:

- Sou quê.

 

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Abri minha janela ao vento norte - Ruy Cinatti

 

Abri minha janela ao vento norte

A ver se o frio me acordava

De um sonho em que eu próprio duvidava.

- No céu brilhavam estrelas mais que nunca.

Em vão, desde então, eu procurei

Lembrar o seu olhar, a sua imagem

Tão bela, tão perfeita, mais miragem.

- No céu brilhavam estrelas mais que nunca.

 

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Para a Cristina - José Fanha

 

Como tudo

Hás-de chegar com o corpo

Encostado ao rosto

Da cidade.

Com teus olhos

Decididamente tristes

Vens tomar a minha mão

Dar-lhe o gosto das cerejas

E levá-la ao teu

Mais secreto descaminho.

Hás-de chegar

Nas asas do silêncio

Tão mansa como a tarde

Que se esvai

Entornando sobre o chão

O perfil agudo das paredes.

Chegas hoje ou amanhã

Quem sabe?

Hás-de chegar de surpresa

Como sempre

Desviando o sentido dos relógios

E pedindo que o desejo

Se vista de veludo.

 

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Para o Mia Couto - José Fanha

 

Elefantemos portanto.

Deixemos esta tão precária pele

Aprender outros saberes

Deixemos

Portantomente

O olhar do paquiderme

Ensinar ao passarinho

As paisagens do deslumbre

Das escritas mais antigas.

Permitamos que o vento sopre.

E que a pedra exista.

E que o sol dispare a sua fúria

Em todas as direcções.

E que a lua se entretenha

No seu jogo de brilhar.

Elefantemos portanto.

Ou,

Melhor dizendo,

Permitamos que um silêncio muito antigo

Venha

Carregado de silvos e sussurros

Venha

Conduzir-nos a palavra

Pelas veredas impalpáveis

Do mistério.

 

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Romance ingénuo de duas linhas paralelas - José Fanha

 

Duas linhas paralelas

Muito paralelamente

Iam passando entre estrelas

Fazendo o que estava escrito:

Caminhando eternamente de infinito a infinito

Seguiam-se passo a passo

Exactas e sempre a par

Pois só num ponto do espaço

Que ninguém sabe onde é

Se podiam encontrar

Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha

Uma delas certo dia

Voltou-se para a outra linha

Sorriu-lhe e disse-lhe assim:

"Deixa lá a geometria

E anda aqui para o pé de mim...!

Diz a outra: "Nem pensar!

Mas que falta de respeito!

Se quisermos lá chegar

Temos de ir devagarinho

Andando sempre a direito

Cada qual no seu caminho!"

Não se dando por achada

Fica na sua a primeira

E sorrindo amalandrada

Pela calada, sem um grito

Deita a mãozinha matreira

Puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente

As duas a murmurar

Olharam-se docemente

E sem fazerem perguntas

Puseram-se a namorar

Seguiram as duas juntas.

Assim nestas poucas linhas

Fica uma estória banal

Com linhas e entrelinhas

E uma moral convergente:

O infinito afinal

Fica aqui ao pé da gente.

 

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Menina dos olhos tristes - Reinaldo Ferreira

 

Menina dos olhos tristes

O que tanto a faz chorar?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.

Senhora de olhos cansados,

Por que a fatiga o tear?

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.

Vamos senhor pensativo,

Olhe o cachimbo a apagar.

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.

Anda bem triste um amigo,

Uma carta o fez chorar.

- O soldadinho não volta

Do outro lado do mar.

A Lua, que é viajante,

É que nos pode informar.

- O soldadinho já volta

Do outro lado do mar.

O soldadinho já volta

Está mesmo a chegar.

Vem numa caixa de pinho.

Desta vez o soldadinho

Nunca mais se faz ao mar.

 

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Mãe negra - Aguinaldo Fonseca

 

A mãe negra embala o filho.

Canta a remota canção

Que seus avós já cantavam

Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu

Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,

Que o céu

Às vezes também é negro.

No céu

Tão estrelado e festivo

Não há branco, não há preto,

Não há vermelho e amarelo.

- Todos são anjos e santos

Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa

Nem carinhos de ninguém...

A mãe negra é triste, triste,

E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu estrelado

E de repente sorri.

Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando

Com simpatia e saudade...

 

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Aldeia - Manuel da Fonseca

 

Nove casas,

Duas ruas,

Ao meio das ruas

Um largo,

Ao meio do largo

Um poço de água fria.

Tudo isto tão parado

E o céu tão baixo

Que quando alguém grita para longe

Um nome familiar

Se assustam pombos bravos

E acordam ecos no descampado.

 

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A minha história - Sebastião da Gama

 

A minha história é simples

A tua, meu Amor,

É bem mais simples ainda:

"Era uma vez uma flor.

Nasceu à beira de um Poeta..."

Vês como é simples e linda?

(O resto conto depois;

Mas tão a sós, tão de manso,

Que só escutemos os dois.)

 

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Elegia segunda - Sebastião da Gama

 

Todos os pássaros, todos os pássaros

Asas abriam, erguiam cantos,

De Amor cantavam.

Todos os homens, todos os homens,

De almas abertas, de olhos erguidos,

De Amor cantavam.

De Amor cantavam todos os rios,

Todas as serras, todas as flores,

Todos os bichos, todas as árvores,

Todo os pássaros, todos os pássaros,

Todos os homens, todos os homens.

De Amor cantavam...

 

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O tempo e a vida - Sebastião da Gama

 

Que bom ter o relógio adiantado!...

A gente assim, por saber

Que tem sempre tempo a mais,

Não se rala nem se apressa.

O meu sorriso de troça,

Amigos,

Quando vejo o meu relógio

Com três quartos de hora a mais!...

Tic-tac... Tic-tac...

(Lá pensa ele

Que é já o fim dos meus dias)

Tic-tac...

(Como eu rio, cá p´ra dentro,

De esta coisa divertida:

Ele a julgar que é já o resto

E eu a saber que tenho sempre mais

Três quartos de hora de vida).

 

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Quando eu nasci - Sebastião da Gama

 

Quando eu nasci,

Ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,

Nem o Sol escureceu,

Nem houve Estrelas a mais...

Somente,

Esquecida das dores,

A minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,

Não houve nada de novo

Senão eu.

As nuvens não se espantaram,

Não enlouqueceu ninguém...

P'ra que o dia fosse enorme,

Bastava

Toda a ternura que olhava

Nos olhos de minha Mãe...

 

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Barca bela - Almeida Garrett

 

Pescador da barca bela,

Onde vais pescar com ela.

Que é tão bela,

Oh pescador?

Não vês que a última estrela

No céu nublado se vela?

Colhe a vela,

Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,

Que a sereia canta bela...

Mas cautela,

Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,

Que perdido é remo e vela

Só de vê-la,

Oh pescador.

Pescador da barca bela,

Inda é tempo, foge dela

Foge dela

Oh pescador!

 

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Este inferno de amar - Almeida Garrett

 

Este inferno de amar - como eu amo!

Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?

Esta chama que alenta e consome,

Que é a vida - e que a vida destrói -

Como é que se veio a atear,

Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que d'antes vivi

Era um sonho talvez... - foi um sonho -

Em que paz tão serena a dormi!

Oh! que doce era aquele sonhar...

Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso

Eu passei... dava o sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam,

Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;

Mas nessa hora a viver comecei...

 

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Impressão digital - António Gedeão

 

Os meus olhos são uns olhos.

E é com esses olhos uns

Que eu vejo no mundo escolhos

Onde outros com outros olhos,

Não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.

De tudo o mesmo se diz.

Onde uns vêem luto e dores

Uns outros descobrem cores

Do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas

Onde passa tanta gente,

Uns vêem pedras pisadas,

Mas outros, gnomos e fadas

Num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,

Querer ser depois ou ser antes.

Cada um é seus caminhos.

Onde Sancho vê moinhos

D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.

Vê gigantes? São gigantes.

 

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Lágrima de preta - António Gedeão

 

Encontrei uma preta

Que estava a chorar,

Pedi-lhe uma lágrima

Para a analisar.

Recolhi a lágrima

Com todo o cuidado

Num tubo de ensaio

Bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,

Do outro e de frente:

Tinha um ar de gota

Muito transparente.

Mandei vir os ácidos,

As bases, os sais,

As drogas usadas

Em casos que tais.

Ensaiei a frio,

Experimentei ao lume,

De todas as vezes

Deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,

Nem vestígios de ódio,

Água (quase tudo)

E cloreto de sódio.

 

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Poema da Auto-Estrada - António Gedeão

 

Voando vai para a praia

Leonor na estrada preta.

Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,

Vermelho de alizarina,

modelando a coxa fina

De impaciente nervura.

Como guache lustroso,

Amarelo de indantreno,

Blusinha de terileno

Desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.

Vai na brasa de lambreta.

Agarrada ao companheiro

Na volúpia da escapada

Pincha no banco traseiro

Em cada volta da estrada.

Grita de medo fingido,

Que o receio não é com ela,

Mas por amor e cautela

Abraça-o pela cintura.

Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem

Corta a lambreta afiada,

Engole as bermas da estrada

E a rumorosa folhagem.

Urrando, estremece a terra,

Bramir de rinoceronte,

Enfia pelo horizonte

Como um punhal que se enterra.

Tudo foge à sua volta,

O céu, as nuvens, as casas,

E com os bramidos que solta

Lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos

Já nem percebe, Leonor,

Se o que lhe chega aos ouvidos

São ecos de amor perdidos

Se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.

Vai na brasa de lambreta.

 

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Limite - Fernando Guimarães

 

É uma palavra. Agora só tu escutas

A respiração que a sustenta, uma voz

Para sempre esquecida. Sei

Que é assim. O que escrevo ainda não existe;

O que lês é o resultado dessa ausência.

Esclarecimento - Mário Henrique Leiria

Quando estamos cansados

Deitamos o corpo

E adormecemos

Às vezes não

Procuramos outra mão

Outros olhos

Que nos limpem a fadiga

E evitem o sono

Que nos vem antigo

Quando estamos cansados

Podemos erguer o corpo

E acordar

E morrer acordados

Sem cansaço

 

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Rifão Quotidiano - Mário Henrique Leiria

 

Uma nêspera

Estava na cama

Deitada

Muito calada

A ver

O que acontecia

Chegou uma Velha

E disse

Olha uma nêspera

E zás comeu-a

É o que acontece

Às nêsperas

Que ficam deitadas

Caladas

A esperar

O que acontece

 

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Tempestade - Henriqueta Lisboa

 

- Menino, vem para dentro,

Olha a chuva lá na serra,

Olha como vem o vento!

- Ah! Como a chuva é bonita

E como o vento é valente!

- Não sejas doido, menino,

Esse vento te carrega,

Essa chuva te derrete!

- Eu não sou feito de açúcar

Para derreter na chuva.

Eu tenho força nas pernas

Para lutar contra o vento!

E enquanto o vento soprava

E enquanto a chuva caía,

Que nem um pinto molhado,

Teimoso como ele só:

- Gosto de chuva com vento,

Gosto de vento com chuva!

 

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Não posso adiar o amor para outro século - A. Ramos Rosa

 

Não posso

Ainda que o grito sufoque na garganta

Ainda que o ódio estale e crepite e arda

Sob montanhas cinzentas

E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço

Que é uma arma de dois gumes

Amor e ódio

Não posso adiar

Ainda que a noite pese séculos sobre as costas

E a aurora indecisa demore

Não posso adiar para outro século a minha vida

Nem o meu amor

Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

 

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Letra para um hino - Manuel Alegre

 

É possível falar sem um nó na garganta.

É possível amar sem que venham proibir.

É possível correr sem que seja a fugir.

Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão.

É possível viver sem que seja de rastos.

Os teus olhos nasceram para olhar os astros.

Se te apetece dizer não, grita comigo: não!

É possível viver de outro modo.

É possível transformar em arma a tua mão.

É possível viver o amor. É possível o pão.

É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.

É possível viver sem fingir que se vive.

É possível ser homem.

É possível ser livre, livre, livre.

 

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Há palavras - Irondino Teixeira Aguiar

 

Há palavras com o dom

De atrapalhar a gente,

Pois que, tendo o mesmo som,

Têm grafia diferente.

Passo, com s dobrado,

em de passar - bem sabeis -;

Paço, com c cedilhado,

É palácio ... mas de reis.

Nós, com s é um pronome,

E um pronome de primeira;

Noz, com z é sempre um nome

Pois é fruto de nogueira.

 

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Timidez - Maria Alberta Menéres

 

O bicho-de-conta

Faz de conta, faz

Que é cabeça tonta

Mas lá bem no fundo

Não é mau rapaz.

Se a gente lhe toca,

Logo se disfarça:

Veste-se de bola.

Por mais que se faça

Não se desenrola.

Lá dentro escondendo

Patinhas e rosto

É todo um segredo:

Se eu fosse menino

Comigo brincava

Sem medo sem medo.

 

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