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Poesia 100

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LISTA DE POETAS POR ORDEM ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME
 

Elegia - Nuno Judice

 

Nem os dias longos me separam da tua imagem.

Abro-a no espelho de um céu monótono, ou

deixo que a tarde a prolongue no tédio dos

horizontes. O perfil cinzento da montanha,

para norte, e a linha azul do mar, a sul,

dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia

quando, ao dizer o teu nome, a realidade do

som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo

o silêncio para que dele possas renascer,

sombra, e dessa presença possa abstrair a

tua memória.

 

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Écloga - Nuno Júdice

 

Sonhei contigo embora nenhum sonho

possa ter habitantes, tu a quem chamo

amor, cada ano pudesse trazer

um pouco mais de convicção a

esta palavra. É verdade o sonho

poderá ter feito com que, nesta

rarefacção de ambos, a tua presença se

impusesse - como se cada gesto

do poema te restituísse um corpo

que sinto ao dizer o teu nome,

confundindo os teus

lábios com o rebordo desta chávena

de café já frio. Então, bebo-o

de um trago o mesmo se pode fazer

ao amor, quando entre mim e ti

se instalou todo este espaço -

terra, água, nuvens, rios e

o lago obscuro do tempo

que o inverno rouba à transparência

da fontes. É isto, porém, que

faz com que a solidão não seja mais

do que um lugar comum saber

que existes, aí, e estar contigo

mesmo que só o silêncio me

responda quando, uma vez mais

te chamo.

 

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Hai - Kais -  Guimarães Rosa

 

Imensidão

Cheiro salgado

de um cavalo suado

Quem galopa no mar ?...

 

Romance - I

No cinzeiro cheio

de cigarros fumados

os restos de uma carta...

 

Egoísmo

Se fosse só eu

a chorar de amor,

sorriria...

 

Mundo pequeno

O albatroz prepara

breve passeio

de Pólo a Pólo...

 

Romance - II

Bem na frente

de um retrato empoeirado,

uma aliança esquecida...

 

Infinito

Ó múmia longa,

ante os teus séculos,

eu durmo ainda...

 

Evocação

Lagosta púrpura

uma galera a remos

conduzindo um César...

 

Turismo sentimental

Viajei toda a Ásia

ao alisar o dorso

da minha gata angorá...

 

Turbulência

O vento experimenta

o que irá fazer

com sua liberdade...

 

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Sonho Árabe - Jaime Cortesão

 

I

Ser um árabe e ter perto

A morena companheira,

A vida um grande deserto,

Tu a única palmeira;

Manto ao vento, ir de carreira

A galope em campo aberto,

Na mão a lança guerreira...

—Assim eu sonho, desperto.

Cai a tarde. Volto a casa.

E já da planície rasa

Surge a cidade natal.

Voam cegonhas ao Sul;

Ofusca a alvura de cal;

E há minaretes no Azul.

II

E eu evoco a alcova já:

Mosaicos de lés a lés

E, para a nudez dos pés,

Alcatifas de Rabat.

Só a penumbra entra lá.

Perfumadores de aloés,

Colchas, coxins, narguilés,

E um tamborete com chá.

Das vivas cores o matiz,

O teu corpo, a tua fala,

Luz e olor, tudo condiz.

Bastam os tons: de garridos,

Entornam fogo na sala

E embebedam os sentidos.

III

Há rosas no azul do espaço;

A tarde lembra um jardim;

O deserto é d’oiro baço

E as mesquitas de marfim.

Caem flores quando passo,

Lá do alto sobre mim;

Allah abriu o regaço,

Cheira a cravos e a jasmim.

Entro na alcova, — alegrete

De cores festivas e aromas.

Tu bailas sobre um tapete.

Afago-te o seio duro,

E, ao beijar-te as duas pomas,

"Só Deus é grande!" — murmuro.

in "Divina Voluptuosidade", Livraria Bertrand, 1923

 

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A Carlos Drummond de Andrade - João Cabral de Melo Neto

 

Não há guarda-chuva

contra o poema

subindo de regiões onde tudo é surpresa

como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva

contra o amor

que mastiga e cospe como qualquer boca,

que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva

contra o tédio:

o tédio das quatro paredes, das quatro

estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva

contra o mundo

cada dia devorado nos jornais

sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva

contra o tempo,

rio fluindo sob a casa, correnteza

carregando os dias, os cabelos.

 

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Vosso Filho é Nascido - João Cabral de Melo Neto

 

Compadre José, compadre,

que na relva estais deitado.

Conversais e não sabeis

que vosso filho é chegado?

Estais aí conversando

em vossa prosa entertida.

Não sabeis que vosso filho

saltou para dentro da vida?

Saltou para dentro da vida

ao dar seu primeiro grito.

E estais aí conversando!

Pois sabei que ele é nascido.

 

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Sem título - Dom João da Câmara

 

Amortecera o lume da lareira;

no pálido clarão, que o fundo esmalta,

a minha fantasia que se exalta,

vê passar mil visões, como em fileira.

Como as fagulhas correm na madeira

e morrem, passam elas na ribalta;

nem uma só lembrança ali me falta

de tanto que passei na vida inteira!

Oh! deixem-me sonhar um sonho infindo!

Dormir é reviver. Quero, dormindo,

viver o meu passado tão risonho!

Não me despertes, anjo da saudade...

Tanto sonho já foi realidade;

já foi realidade... e agora é sonho!

 

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Noite no Tejo - Dom João da Câmara

 

O rio é negro e nem de espuma um claro o esmalta,

Que a noite é negra e um negro incauto encobre a Lua;

Apenas uma vela em mastro de falua

De tanto negro, negro, em tanto alvor, ressalta.

De lume fátuo, incerto, onde o contorno falta,

Assim no escuro da alma uma ilusão flutua;

O enxame da cobiça em torno tumultua,

E a fantasia, entanto, aspira a luz mais alta.

Fazendo volta ao mar, voltar-me a noite bela

Das auras bem pudera o cântico em surdina,

Que as nuvens extravia e os sonhos maus debela.

E, rota da luz a luminosa mina,

Eu vira, em meu transporte, altiva, a branca vela,

Correr, sorrir, brilhar no ardor da tremulina.

 

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Pórtico - João José Cochofel

 

Outros serão

os poetas da força e da ousadia.

Para mim

- ficará a delicadeza dos instantes que fogem

a inutilidade das lágrimas que rolam

a alegria sem motivo duma manhã de sol

o encantamento das tardes mornas

a calma dos beijos longos.

(Um ócio grande. Morre tudo

dum morrer suave e brando...

Que os outros fiquem com o seu fel

as suas imprecações

o seu sarcasmo.

Para mim

será esta melancolia mansa

que me é dada pela certeza de saber

que a culpa é sempre minha

se as lágrimas correm ...

 

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Os Dias Íntimos - João José Cochofel

 

Mói música um realejo,

poético de convenção.

Mas é hoje o que agrada

ao meu coração.

Com castanhas assadas,

chuva na imaginação,

e luzes molhadas

no asfalto do chão,

Egoísmo de bicho,

simulado ou não,

mas que bem me sabe

esta solidão.

Ó comedida felicidade,

com teu ópio vão

sobre tanta náusea

passa a tua mão.

 

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A Balada do Fumo - João Lúcio

 

Cada curva de fumo tem um som,

Tão vago e tão subtil como o gerar

Dum perfume suave, ou dum tom,

Que apenas comece a palpitar.

Torce-se o fumo sempre, e os ruídos

Das suas crispações podem-se ouvir;

Mas não bastam apenas os ouvidos

Para os compreender, para os sentir.

Alguma coisa em nós, muito interior,

Um sentido criado, p'ra que a dor

E a voz de tudo o que há seja escutada;

Dá-nos a percepção dos sons das curvas,

Da música ideal das ondas turvas

Do fumo, onde está presa uma balada.

 

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Sensações Desconhecidas - João Lúcio

(Ao Bernardo de Passos, Júnior)

 

Há tanta sensação que não conheço

Tanto vibrar de nervos que não sinto;

E, contudo, parece que os pressinto,

Apesar de ver bem que os desconheço.

A sensação que tem, à noite, o Ar,

Quando o orvalho o toca, em beijos d'água

É, porventura, irmã daquela mágoa

Que sente, quando chora, meu olhar?!

Tem, porventura, alguma semelhança

A sensação dum cravo numa trança,

Com a ânsia de quem morre afogado?

E fico-me a pensar que sentirá

Uma vidraça quando o Sol lhe dá

E a rasga a mão da luz, de lado a lado...

 

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À Neve - João Lúcio

 

Ó neve que Deus fez para as montanhas

Brilharem ao luar, transfiguradas.

Ó neve, que lhes dás formas estranhas,

E as ergues para o Céu, purificadas:

Tu que sabes tirar a sensação,

Sob o gelar da tua mão serena,

E que toda a crispada convulsão

Podes fazer, depressa, bem pequena:

Tu que os lírios pões petrificados

Parecendo do mármore talhados,

Que aos rios imobilizas a corrente:

Como cais nos montes e nos prados,

Tomba no coração dos desgraçados:

Tira-lhe as sensações eternamente.

 

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Pálida e Loira - António Feijó

 

Morreu. Deitada num caixão estreito,

pálida e loira, muito loira e fria,

o seu lábio tristíssimo sorria

como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,

foi descansar no derradeiro leito,

as mãos de neve erguidas, sobre o peito,

pálida e loira, muito loira e fria.

Tinha a cor da rainha das baladas

e das monjas antigas maceradas

no pequenino esquife em que dormia.

Levou-a a morte em sua garra adunca,

e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!

pálida e loira, muito loira e fria.

 

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Amar ou Odiar - Fausto Guedes Teixeira

 

Amar ou odiar: ou tudo ou nada.

O meio termo é que não pode ser.

A alma tem de estar sobressaltada

P'ra o nosso barro se sentir viver.

 

Não é uma cruz a que não for pesada,

metade de um prazer não é um prazer;

e quem quiser a alma sossegada

fuja do mundo e deixe-se morrer.

 

Vive-se tanto mais quanto se sente:

todo o valor está no que sofremos.

Que nenhum homem seja indiferente!

 

Amemos muito como odiamos já:

a verdade está sempre nos extremos,

porque é no sentimento que ela está.

 

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Mater Dolorosa - Gonçalves Crespo

 

Quando se fez ao largo a nave escura

na praia essa mulher ficou chorando,

no doloroso aspecto figurando

a lacrimosa estátua da amargura.

Dos céus a curva era tranquila e pura,

das gementes alcíones o bando

via-se ao longe, em círculos, voando

dos mares sobre a cérula planura.

Nas ondas se atufara o sol radioso,

e a Lua sucedera, astro mavioso,

de alvor banhando os alcantis das fragas.

E aquela pobre mãe, não dando conta

que o Sol morrera e que o luar desponta,

a vista embebe na amplidão das vagas.

 

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Prece - José Duro

 

Ó Morte, vai buscar a raiva abendiçoada

com que matas o mal e geras novos seres,

ó Morte, vai depressa e traz-ma, se puderes,

que eu canso de viver, quero voltar ao nada.

Escorre-me da boca a voz que inda murmura,

arranca-me do peito o coração exangue,

que eu hei-de dar-te em troca os restos do meu sangue,

para o negro festim da tua fome escura.

Ó santa que eu adoro, ó virgem de olhar triste,

bendita sejas tu, ó morte inexorável,

pelo mundo a chorar desde que o mundo existe...

Dá-me do teu licor, quero beber a esmo,

que eu vivo no abandono e sou um miserável

aos tombos pela vida em busca de mim mesmo.

 

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Uma voz que canta convoca a terra perdida - José Eduardo Agualusa

 

Uma voz que canta convoca a terra perdida.

Quase em surdina, evoca os secretos lugares

da infância;

o sítio onde pousavam os pássaros

o quintal cheio de estórias

e - lembras-te? - a tarde em chamas.

A voz murmura:

O exílio é onde nada se recorda de ti

Nada te diz:

sou teu/és meu

 

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O Incêndio - Júlio Dantas

 

- "Ao convento! ao convento!" - Uiva de longe o vento.

É noite. E a multidão, descalça, esfomeada,

à luz de archotes, sobe a ladeira empedrada,

praguejando e gritando: - "Ao convento! ao convento!"

A onda do povo cresce e galga num momento.

Chispam ferros no ar. A porta, chapeada

de bronze, range, oscila e cai à machadada.

Nem um frade. Deserta a casa de S. Bento.

A multidão convulsa invade a portaria:

- "Fogo ao convento! fogo à igreja, à sacristia!"

O incêndio lavra, estoira o vigamento a arder.

Em baixo, o povo dança. E uma mulher grosseira

grita, rouca, atirando um Missal à fogueira:

- "Tanto livro, e ninguém nos ensinou a ler!"

 

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Se...-Luísa Dacosta

 

Se eu tivesse um carro

havia de conhecer

toda a terra.

Se eu tivesse um barco

havia de conhecer

todo o mar.

Se eu tivesse um avião

havia de conhecer

todo o céu.

Tens duas pernas

e ainda não conheces

a gente da tua rua.

 

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Ritual - Luíza Neto Jorge

 

a jarra tombou

a água correu sobre a mesa

as flores calaram-se aos poucos

o espantalho tocou o acordeão

a criança cansou-se do vento

desatou a sandálias

o mar meditou duas vezes

qual o horizonte

do sótão a galinha presa

viu um avião voar

uns quantos vestiram-se de negro

viveram da morte dos outros

suicidou-se uma sombra

debaixo do meu pé

a mulher calçou-se de branco

para a ressurreição

o país desbotou

no mapa das escolas

amor que esperas de mim

a não ser eu

 

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Poema Quase Epitáfio - Luíza Neto Jorge

 

Violentamente só

desfeito em louco

- nem um gato lunar

te arranha um pouco

Morreram-te na família

irmãos mais velhos

Restam retratos de vidro

e espelhos

Entre as fêmeas bendita

não te quis

As outras mataste

(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país

deu-te água e uma raiz

muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós

Quando ele morrer

onde o pões?

 

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As Casas Vieram de Noite - Luíza Neto Jorge

 

As casas vieram de noite

De manhã são casas

À noite estendem os braços para o alto

fumegam vão partir

Fecham os olhos

percorrem grandes distâncias

como nuvens ou navios

As casas flúem de noite

sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis

que as crianças

Dentro do estuque se fecham

pensativas

Tentam falar bem claro

no silêncio

com sua voz de telhas inclinadas

 

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Poema Sobre a Recusa - Maria Tereza Horta

 

Como é possível perder-te

sem nunca te ter achado

nem na polpa dos meus dedos

se ter formado o afago

sem termos sido a cidade

nem termos rasgado pedras

sem descobrirmos a cor

nem o interior da erva.

Como é possível perder-te

sem nunca te ter achado

minha raiva de ternura

meu ódio de conhecer-te

minha alegria profunda.

 

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Minha Senhora de Mim - Maria Tereza Horta

 

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

sem ser dor ou ser cansaço

nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

nunca dizendo comigo

o amigo nos meus braços

Comigo me desavim

minha senhora

de mim

recusando o que é desfeito

no interior do meu peito

 

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Casa Vitral - Maria Tereza Horta

 

Ó meu sabor

de perder

meu esconder que se está presa

casa vitral

onde ponho

o jogo na sua mesa

Ó meu nardo

meu motivo

flores de ter apanhadas

cortadas pela raiz

em jarras desencontradas

 

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Abrigo - Maria Tereza Horta

 

Abrigo-me de ti

de mim não sei

há dias em que fujo

e que me evado

há horas em que a raiva

não sequei

nem a inveja rasguei

ou a desfaço

Há dias em que nego

e outros onde nasço

há dias só de fogo

e outros tão rasgados

Aqueles onde habito com tantos

dias vagos.

 

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Egoísmo - Maria Tereza Horta

 

Que me importa

amor

que seja dia

ou que seja noite iluminada

Que me importa

amor

que seja a chuva

ou um novelo de paz a madrugada

Que me importa

amor

que seja o vento

ou a flor o fogo mais aceso

Que me importa

amor

que seja a raiva

Que me importa

amor

que seja o medo

 

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Caminhemos Serenos - Papiniano Carlos

 

Sob as estrelas, sob as bombas,

sob os turvos ódios e injustiças,

no frio corredor de lâminas eriçadas,

no meio do sangue, das lágrimas

caminhemos serenos.

De mãos dadas,

através da última das ignomínias,

sob o negro mar da iniquidade

caminhemos serenos.

Sob a fúria dos ventos desumanos,

sob a treva e os furacões de fogo

aos que nem com a morte podem vencer-nos

caminhemos serenos.

O que nos leva é indestrutível,

a luz que nos guia conosco vai.

E já que o cárcere é pequeno

para o sonho prisioneiro,

já que o cárcere não basta

para a ave inviolável,

que temer, ó minha querida?:

caminhemos serenos.

No pavor da floresta gelada,

através das torturas, através da morte,

em busca do país da aurora,

de mãos dadas, querida, de mãos dadas

caminhemos serenos.

 

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Canção - Papiniano Carlos

 

Na fome verde das searas roxas

passeava sorrindo Catarina.

Na fome verde das searas roxas

ai a papoula cresce na campina!

Na fome roxa das searas negras

que levas, Catarina, em tua fronte?

Na fome roxa das searas negras

ai devoravam os corvos o horizonte!

Na fome negra das searas rubras

ai da papoula, ai de Catarina!

Na fome negra das searas rubras

trinta balas gritaram na campina.

Trinta balas

te mataram a fome, Catarina.

 

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O palácio da Ventura - Antero de Quental

 

Sonho que sou um cavaleiro andante.

Por desertos, por sóis, por noite escura,

Paladino do amor, busco anelante

O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,

Quebrada a espada já, rota a armadura...

E eis que súbito o avisto, fulgurante

Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:

Eu sou o Vagabundo, O Deserdado...

Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...

Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão - e nada mais!

 

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Cantar de Amigo - José Régio

 

À beira do rio fui dançar... Dançando

Me estava entretendo,

Muito a sós comigo,

Quando na outra margem, como se escondendo

Para que eu não visse que me estava olhando,

Por entre os salgueiros vi o meu amigo.

Vi o meu amigo cujos olhos tristes

Certo se alegravam

De me ver dançar.

Fui largando as roupas que me embaraçavam,

Fui soltando as tranças...Olhos que me vistes,

Doces olhos tristes, não no ireis contar!

Que o amor é lume bem eu o sei...que logo

Que vi meu amigo

Por entre os salgueiros,

Melhor eu dançava, já não só comigo

Toda num quebranto, ao mesmo tempo em fogo,

Melhor eu movia mãos e pés ligeiros.

Que Deus me perdoe, que aos seus olhos tristes

Assim ofertava

Minha formosura!

Se não fora o rio que nos separava,

Cruel com nós ambos, olhos que me vistes,

Nem eu me amostrara tão de mim segura...

 

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Cavalgada - Armindo Rodrigues

 

Já rebentei de correr

Sete cavalos a fio.

O primeiro era cinzento

Com sonhos de água sem fundo

E cor do norte o segundo

Com ferraduras de prata.

O terceiro era um mistério

E o quarto cor de agonia.

O quinto, de olhos em brasa,

Era só prata e espanto.

O sexto não se sabia

Se era cavalo, se vento.

Corria o sétimo tanto

Que nem a cor se lhe via.

Quanto mais ando mais meço

As distâncias que há em mim

Cada desejo é um fim

E cada fim um começo.

 

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Natal de 1971-Jorge de Sena

 

Natal de quê? De quem?

Daqueles que o não têm?

Dos que não são cristãos?

Ou de quem traz às costas

As cinzas de milhões?

Natal de paz agora

Nesta terra de sangue?

Natal de liberdade

Num mundo de oprimidos?

Natal de uma justiça

Roubada sempre a todos?

Natal de ser-se igual

Em ser-se concebido,

Em de um ventre nascer-se,

Em por de amor sofrer-se,

Em de morte morrer-se,

E de ser-se esquecido?

Natal de caridade,

Quando a fome ainda mata?

Natal de qual esperança

Num mundo todo bombas?

Natal de honesta fé,

Com gente que é traição,

Vil ódio, mesquinhez,

E até Natal de amor?

Natal de quê? De quem?

Daqueles que o não têm?

Ou dos que olhando ao longe

Sonham de humana vida

Um mundo que não há?

Ou dos que se torturam

E torturados são

Na crença de que os homens

Devem estender-se a mão?

 

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"Quem a tem..."-Jorge de Sena

 

Não hei-de morrer sem saber

Qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser

Desta terra em que nasci.

Embora ao mundo pertença

E sempre a verdade vença,

Qual será ser livre aqui,

Não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,

É quase um crime viver.

Mas embora escondam tudo

E me queiram cego e mudo,

Não hei-de morrer sem saber

Qual a cor da liberdade.

 

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Fim - Mário de Sá-Carneiro

 

Quando eu morrer

Batam em latas,

Rompam aos saltos e aos pinotes

Façam estalar no ar chicotes

Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza:

A um morto nada se recusa,

E eu quero por força ir de burro...

 

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Todos já vimos - Fernando Sylvan

 

Todos já vimos

Nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão

Retratos de meninas e meninos

A defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos

Nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão

Retratos de cadáveres de meninos e meninas

Que morreram a defender a liberdade de armas na mão.

Todos já vimos!

E então?

 

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História antiga - Miguel Torga

 

Era uma vez, lá na Judeia, um rei,

Feio bicho, de resto:

Um cara de burro sem cabresto

E duas grandes tranças.

A gente olhava, reparava e via

Que naquela figura não havia

Olhos de quem gosta de crianças.

E na verdade, assim acontecia,

Porque um dia,

O malvado,

Só por ter o poder de quem é rei

Ou não ter coração,

Sem mais nem menos,

Mandou matar quantos eram pequenos

Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,

Por acaso ou milagre, aconteceu

Que, num burrinho pela areia fora,

Fugiu

Daquelas mãos de sangue um pequenito

Que o vivo sol da vida acarinhou;

E bastou

Esse palmo de sonho

Para encher este mundo de alegria;

Para crescer, ser Deus;

E meter no inferno o tal das tranças,

Só porque ele não gostava de crianças.

 

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Instante - Miguel Torga

 

A cena é muda e breve:

Num lameiro,

Um cordeiro

A pastar ao de leve;

Embevecida, a mãe ovelha deixa de remoer;

E a vida

Pára também, a ver.

 

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Não saibas: imagina...-Miguel Torga

 

Deixa falar o mestre, e devaneia...

A velhice é que sabe, e apenas sabe

Que o mar não cabe

Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!

Inventa um alfabeto

De ilusões...

Um á-bê-cê secreto

Que soletres à margem das lições...

Voa pela janela

De encontro a qualquer sol que te sorri!

Asas? Não são precisas:

Vais ao colo das brisas,

Aias da fantasia...

 

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Natal - Miguel Torga

 

Outro natal,

Outra comprida noite

De consoada

Fria,

Vazia,

Bonita só de ser imaginada.

Que fique dela, ao menos,

Mais um poema breve

Recitado

Pela neve

A cair, ao de leve,

No telhado.

 

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A galinha espertinha - António Manuel Couto Viana

 

Era uma vez uma galinha

Que entrou pela cozinha,

Onde havia uma panela,

Mas sem nada dentro dela.

Ouviu, então,

A voz fraquinha do patrão

Dizendo à cozinheira:

- "Não se arranja

Por aí uma canja?

Estou cheio de fome."

Pôs a galinha um ovo e disse: - Come."

E fugiu sem demora,

Antes que lhe chegasse a derradeira hora.

 

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O cão - Afonso Lopes Vieira

 

O cão

Que faz ão, ão

É bom amigo como os que o são!

É bom amigo, bom companheiro,

É valente, fiel, verdadeiro,

Leal, serviçal,

E tem bom coração

Que o diga o seu dono, se ele o tem ou não!

Quem vem de fora, a gente

E chega a casa, é o cão

Quem diz primeiro, todo prazenteiro,

Saltando e rindo

Contente,

E com olhos a brilhar de amor:

- "Ora seja bem vindo

O meu senhor"

O cão

Que faz ão, ão

É bom amigo como os que o são!

 

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Coraçam já repousavas - Jorge de Aguiar (séc. XV)

 

Coraçam já repousavas,

Já não tinhas sujeiçam,

Já vivias, já folgavas;

Pois porque te sojigavas

Outra vez, meu coraçam?

Sofre, pois te não sofreste

Na vida que já vivias;

Sofre, pois te tu perdeste,

Sofre, pois não conheceste

Como te outra vez perdias;

Sofre, pois já livre estavas

E quiseste sujeiçam;

Sofre, pois te não lembravas

Das dores de que escapavas:

Sofre, sofre, coraçam!

 

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Coração já repousavas - Jorge de Aguiar (séc. XV)

(Versão em gramática moderna )

 

Coração já repousavas,

Já não tinhas sujeição,

Já vivias, já folgavas;

Pois porque te subjugavas

Outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste

Na vida que já vivias;

Sofre, pois te tu perdeste,

Sofre, pois não conheceste

Como outra vez te perdias;

Sofre, pois já livre estavas

E quiseste sujeição;

Sofre, pois te não lembravas

Das dores de que escapavas:

Sofre, sofre, coração!

 

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