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LISTA DE POETAS POR ORDEM
ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME
Nem os dias longos me separam da tua imagem. Abro-a no espelho de um céu monótono, ou deixo que a tarde a prolongue no tédio dos horizontes. O perfil cinzento da montanha, para norte, e a linha azul do mar, a sul, dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia quando, ao dizer o teu nome, a realidade do som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo o silêncio para que dele possas renascer, sombra, e dessa presença possa abstrair a tua memória.
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Sonhei contigo embora nenhum sonho possa ter habitantes, tu a quem chamo amor, cada ano pudesse trazer um pouco mais de convicção a esta palavra. É verdade o sonho poderá ter feito com que, nesta rarefacção de ambos, a tua presença se impusesse - como se cada gesto do poema te restituísse um corpo que sinto ao dizer o teu nome, confundindo os teus lábios com o rebordo desta chávena de café já frio. Então, bebo-o de um trago o mesmo se pode fazer ao amor, quando entre mim e ti se instalou todo este espaço - terra, água, nuvens, rios e o lago obscuro do tempo que o inverno rouba à transparência da fontes. É isto, porém, que faz com que a solidão não seja mais do que um lugar comum saber que existes, aí, e estar contigo mesmo que só o silêncio me responda quando, uma vez mais te chamo.
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Imensidão Cheiro salgado de um cavalo suado Quem galopa no mar ?...
Romance - I No cinzeiro cheio de cigarros fumados os restos de uma carta...
Egoísmo Se fosse só eu a chorar de amor, sorriria...
Mundo pequeno O albatroz prepara breve passeio de Pólo a Pólo...
Romance - II Bem na frente de um retrato empoeirado, uma aliança esquecida...
Infinito Ó múmia longa, ante os teus séculos, eu durmo ainda...
Evocação Lagosta púrpura uma galera a remos conduzindo um César...
Turismo sentimental Viajei toda a Ásia ao alisar o dorso da minha gata angorá...
Turbulência O vento experimenta o que irá fazer com sua liberdade...
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I Ser um árabe e ter perto A morena companheira, A vida um grande deserto, Tu a única palmeira; Manto ao vento, ir de carreira A galope em campo aberto, Na mão a lança guerreira... —Assim eu sonho, desperto. Cai a tarde. Volto a casa. E já da planície rasa Surge a cidade natal. Voam cegonhas ao Sul; Ofusca a alvura de cal; E há minaretes no Azul. II E eu evoco a alcova já: Mosaicos de lés a lés E, para a nudez dos pés, Alcatifas de Rabat. Só a penumbra entra lá. Perfumadores de aloés, Colchas, coxins, narguilés, E um tamborete com chá. Das vivas cores o matiz, O teu corpo, a tua fala, Luz e olor, tudo condiz. Bastam os tons: de garridos, Entornam fogo na sala E embebedam os sentidos. III Há rosas no azul do espaço; A tarde lembra um jardim; O deserto é d’oiro baço E as mesquitas de marfim. Caem flores quando passo, Lá do alto sobre mim; Allah abriu o regaço, Cheira a cravos e a jasmim. Entro na alcova, — alegrete De cores festivas e aromas. Tu bailas sobre um tapete. Afago-te o seio duro, E, ao beijar-te as duas pomas, "Só Deus é grande!" — murmuro. in "Divina Voluptuosidade", Livraria Bertrand, 1923
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A Carlos Drummond de Andrade - João Cabral de Melo Neto
Não há guarda-chuva contra o poema subindo de regiões onde tudo é surpresa como uma flor mesmo num canteiro. Não há guarda-chuva contra o amor que mastiga e cospe como qualquer boca, que tritura como um desastre. Não há guarda-chuva contra o tédio: o tédio das quatro paredes, das quatro estações, dos quatro pontos cardeais. Não há guarda-chuva contra o mundo cada dia devorado nos jornais sob as espécies de papel e tinta. Não há guarda-chuva contra o tempo, rio fluindo sob a casa, correnteza carregando os dias, os cabelos.
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Vosso Filho é Nascido - João Cabral de Melo Neto
Compadre José, compadre, que na relva estais deitado. Conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversando em vossa prosa entertida. Não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dentro da vida ao dar seu primeiro grito. E estais aí conversando! Pois sabei que ele é nascido.
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Sem título - Dom João da Câmara
Amortecera o lume da lareira; no pálido clarão, que o fundo esmalta, a minha fantasia que se exalta, vê passar mil visões, como em fileira. Como as fagulhas correm na madeira e morrem, passam elas na ribalta; nem uma só lembrança ali me falta de tanto que passei na vida inteira! Oh! deixem-me sonhar um sonho infindo! Dormir é reviver. Quero, dormindo, viver o meu passado tão risonho! Não me despertes, anjo da saudade... Tanto sonho já foi realidade; já foi realidade... e agora é sonho!
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Noite no Tejo - Dom João da Câmara
O rio é negro e nem de espuma um claro o esmalta, Que a noite é negra e um negro incauto encobre a Lua; Apenas uma vela em mastro de falua De tanto negro, negro, em tanto alvor, ressalta. De lume fátuo, incerto, onde o contorno falta, Assim no escuro da alma uma ilusão flutua; O enxame da cobiça em torno tumultua, E a fantasia, entanto, aspira a luz mais alta. Fazendo volta ao mar, voltar-me a noite bela Das auras bem pudera o cântico em surdina, Que as nuvens extravia e os sonhos maus debela. E, rota da luz a luminosa mina, Eu vira, em meu transporte, altiva, a branca vela, Correr, sorrir, brilhar no ardor da tremulina.
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Outros serão os poetas da força e da ousadia. Para mim - ficará a delicadeza dos instantes que fogem a inutilidade das lágrimas que rolam a alegria sem motivo duma manhã de sol o encantamento das tardes mornas a calma dos beijos longos. (Um ócio grande. Morre tudo dum morrer suave e brando... Que os outros fiquem com o seu fel as suas imprecações o seu sarcasmo. Para mim será esta melancolia mansa que me é dada pela certeza de saber que a culpa é sempre minha se as lágrimas correm ...
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Os Dias Íntimos - João José Cochofel
Mói música um realejo, poético de convenção. Mas é hoje o que agrada ao meu coração. Com castanhas assadas, chuva na imaginação, e luzes molhadas no asfalto do chão, Egoísmo de bicho, simulado ou não, mas que bem me sabe esta solidão. Ó comedida felicidade, com teu ópio vão sobre tanta náusea passa a tua mão.
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Cada curva de fumo tem um som, Tão vago e tão subtil como o gerar Dum perfume suave, ou dum tom, Que apenas comece a palpitar. Torce-se o fumo sempre, e os ruídos Das suas crispações podem-se ouvir; Mas não bastam apenas os ouvidos Para os compreender, para os sentir. Alguma coisa em nós, muito interior, Um sentido criado, p'ra que a dor E a voz de tudo o que há seja escutada; Dá-nos a percepção dos sons das curvas, Da música ideal das ondas turvas Do fumo, onde está presa uma balada.
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Sensações Desconhecidas - João Lúcio (Ao Bernardo de Passos, Júnior)
Há tanta sensação que não conheço Tanto vibrar de nervos que não sinto; E, contudo, parece que os pressinto, Apesar de ver bem que os desconheço. A sensação que tem, à noite, o Ar, Quando o orvalho o toca, em beijos d'água É, porventura, irmã daquela mágoa Que sente, quando chora, meu olhar?! Tem, porventura, alguma semelhança A sensação dum cravo numa trança, Com a ânsia de quem morre afogado? E fico-me a pensar que sentirá Uma vidraça quando o Sol lhe dá E a rasga a mão da luz, de lado a lado...
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Ó neve que Deus fez para as montanhas Brilharem ao luar, transfiguradas. Ó neve, que lhes dás formas estranhas, E as ergues para o Céu, purificadas: Tu que sabes tirar a sensação, Sob o gelar da tua mão serena, E que toda a crispada convulsão Podes fazer, depressa, bem pequena: Tu que os lírios pões petrificados Parecendo do mármore talhados, Que aos rios imobilizas a corrente: Como cais nos montes e nos prados, Tomba no coração dos desgraçados: Tira-lhe as sensações eternamente.
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Pálida e Loira - António Feijó
Morreu. Deitada num caixão estreito, pálida e loira, muito loira e fria, o seu lábio tristíssimo sorria como num sonho virginal desfeito. Lírio que murcha ao despontar do dia, foi descansar no derradeiro leito, as mãos de neve erguidas, sobre o peito, pálida e loira, muito loira e fria. Tinha a cor da rainha das baladas e das monjas antigas maceradas no pequenino esquife em que dormia. Levou-a a morte em sua garra adunca, e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca! pálida e loira, muito loira e fria.
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Amar ou Odiar - Fausto Guedes Teixeira
Amar ou odiar: ou tudo ou nada. O meio termo é que não pode ser. A alma tem de estar sobressaltada P'ra o nosso barro se sentir viver.
Não é uma cruz a que não for pesada, metade de um prazer não é um prazer; e quem quiser a alma sossegada fuja do mundo e deixe-se morrer.
Vive-se tanto mais quanto se sente: todo o valor está no que sofremos. Que nenhum homem seja indiferente!
Amemos muito como odiamos já: a verdade está sempre nos extremos, porque é no sentimento que ela está.
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Mater Dolorosa - Gonçalves Crespo
Quando se fez ao largo a nave escura na praia essa mulher ficou chorando, no doloroso aspecto figurando a lacrimosa estátua da amargura. Dos céus a curva era tranquila e pura, das gementes alcíones o bando via-se ao longe, em círculos, voando dos mares sobre a cérula planura. Nas ondas se atufara o sol radioso, e a Lua sucedera, astro mavioso, de alvor banhando os alcantis das fragas. E aquela pobre mãe, não dando conta que o Sol morrera e que o luar desponta, a vista embebe na amplidão das vagas.
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Ó Morte, vai buscar a raiva abendiçoada com que matas o mal e geras novos seres, ó Morte, vai depressa e traz-ma, se puderes, que eu canso de viver, quero voltar ao nada. Escorre-me da boca a voz que inda murmura, arranca-me do peito o coração exangue, que eu hei-de dar-te em troca os restos do meu sangue, para o negro festim da tua fome escura. Ó santa que eu adoro, ó virgem de olhar triste, bendita sejas tu, ó morte inexorável, pelo mundo a chorar desde que o mundo existe... Dá-me do teu licor, quero beber a esmo, que eu vivo no abandono e sou um miserável aos tombos pela vida em busca de mim mesmo.
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Uma voz que canta convoca a terra perdida - José Eduardo Agualusa
Uma voz que canta convoca a terra perdida. Quase em surdina, evoca os secretos lugares da infância; o sítio onde pousavam os pássaros o quintal cheio de estórias e - lembras-te? - a tarde em chamas. A voz murmura: O exílio é onde nada se recorda de ti Nada te diz: sou teu/és meu
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- "Ao convento! ao convento!" - Uiva de longe o vento. É noite. E a multidão, descalça, esfomeada, à luz de archotes, sobe a ladeira empedrada, praguejando e gritando: - "Ao convento! ao convento!" A onda do povo cresce e galga num momento. Chispam ferros no ar. A porta, chapeada de bronze, range, oscila e cai à machadada. Nem um frade. Deserta a casa de S. Bento. A multidão convulsa invade a portaria: - "Fogo ao convento! fogo à igreja, à sacristia!" O incêndio lavra, estoira o vigamento a arder. Em baixo, o povo dança. E uma mulher grosseira grita, rouca, atirando um Missal à fogueira: - "Tanto livro, e ninguém nos ensinou a ler!"
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Se eu tivesse um carro havia de conhecer toda a terra. Se eu tivesse um barco havia de conhecer todo o mar. Se eu tivesse um avião havia de conhecer todo o céu. Tens duas pernas e ainda não conheces a gente da tua rua.
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a jarra tombou a água correu sobre a mesa as flores calaram-se aos poucos o espantalho tocou o acordeão a criança cansou-se do vento desatou a sandálias o mar meditou duas vezes qual o horizonte do sótão a galinha presa viu um avião voar uns quantos vestiram-se de negro viveram da morte dos outros suicidou-se uma sombra debaixo do meu pé a mulher calçou-se de branco para a ressurreição o país desbotou no mapa das escolas amor que esperas de mim a não ser eu
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Poema Quase Epitáfio - Luíza Neto Jorge
Violentamente só desfeito em louco - nem um gato lunar te arranha um pouco Morreram-te na família irmãos mais velhos Restam retratos de vidro e espelhos Entre as fêmeas bendita não te quis As outras mataste (nem há sangue que te baste) O chão do teu país deu-te água e uma raiz muitas pedras mas prisões - Senhor demónio dos sós Quando ele morrer onde o pões?
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As Casas Vieram de Noite - Luíza Neto Jorge
As casas vieram de noite De manhã são casas À noite estendem os braços para o alto fumegam vão partir Fecham os olhos percorrem grandes distâncias como nuvens ou navios As casas flúem de noite sob a maré dos rios São altamente mais dóceis que as crianças Dentro do estuque se fecham pensativas Tentam falar bem claro no silêncio com sua voz de telhas inclinadas
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Poema Sobre a Recusa - Maria Tereza Horta
Como é possível perder-te sem nunca te ter achado nem na polpa dos meus dedos se ter formado o afago sem termos sido a cidade nem termos rasgado pedras sem descobrirmos a cor nem o interior da erva. Como é possível perder-te sem nunca te ter achado minha raiva de ternura meu ódio de conhecer-te minha alegria profunda.
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Minha Senhora de Mim - Maria Tereza Horta
Comigo me desavim minha senhora de mim sem ser dor ou ser cansaço nem o corpo que disfarço Comigo me desavim minha senhora de mim nunca dizendo comigo o amigo nos meus braços Comigo me desavim minha senhora de mim recusando o que é desfeito no interior do meu peito
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Casa Vitral - Maria Tereza Horta
Ó meu sabor de perder meu esconder que se está presa casa vitral onde ponho o jogo na sua mesa Ó meu nardo meu motivo flores de ter apanhadas cortadas pela raiz em jarras desencontradas
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Abrigo-me de ti de mim não sei há dias em que fujo e que me evado há horas em que a raiva não sequei nem a inveja rasguei ou a desfaço Há dias em que nego e outros onde nasço há dias só de fogo e outros tão rasgados Aqueles onde habito com tantos dias vagos.
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Que me importa amor que seja dia ou que seja noite iluminada Que me importa amor que seja a chuva ou um novelo de paz a madrugada Que me importa amor que seja o vento ou a flor o fogo mais aceso Que me importa amor que seja a raiva Que me importa amor que seja o medo
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Caminhemos Serenos - Papiniano Carlos
Sob as estrelas, sob as bombas, sob os turvos ódios e injustiças, no frio corredor de lâminas eriçadas, no meio do sangue, das lágrimas caminhemos serenos. De mãos dadas, através da última das ignomínias, sob o negro mar da iniquidade caminhemos serenos. Sob a fúria dos ventos desumanos, sob a treva e os furacões de fogo aos que nem com a morte podem vencer-nos caminhemos serenos. O que nos leva é indestrutível, a luz que nos guia conosco vai. E já que o cárcere é pequeno para o sonho prisioneiro, já que o cárcere não basta para a ave inviolável, que temer, ó minha querida?: caminhemos serenos. No pavor da floresta gelada, através das torturas, através da morte, em busca do país da aurora, de mãos dadas, querida, de mãos dadas caminhemos serenos.
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Na fome verde das searas roxas passeava sorrindo Catarina. Na fome verde das searas roxas ai a papoula cresce na campina! Na fome roxa das searas negras que levas, Catarina, em tua fronte? Na fome roxa das searas negras ai devoravam os corvos o horizonte! Na fome negra das searas rubras ai da papoula, ai de Catarina! Na fome negra das searas rubras trinta balas gritaram na campina. Trinta balas te mataram a fome, Catarina.
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O palácio da Ventura - Antero de Quental
Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura! Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formosura! Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, O Deserdado... Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais! Abrem-se as portas d'ouro, com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais!
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À beira do rio fui dançar... Dançando Me estava entretendo, Muito a sós comigo, Quando na outra margem, como se escondendo Para que eu não visse que me estava olhando, Por entre os salgueiros vi o meu amigo. Vi o meu amigo cujos olhos tristes Certo se alegravam De me ver dançar. Fui largando as roupas que me embaraçavam, Fui soltando as tranças...Olhos que me vistes, Doces olhos tristes, não no ireis contar! Que o amor é lume bem eu o sei...que logo Que vi meu amigo Por entre os salgueiros, Melhor eu dançava, já não só comigo Toda num quebranto, ao mesmo tempo em fogo, Melhor eu movia mãos e pés ligeiros. Que Deus me perdoe, que aos seus olhos tristes Assim ofertava Minha formosura! Se não fora o rio que nos separava, Cruel com nós ambos, olhos que me vistes, Nem eu me amostrara tão de mim segura...
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Já rebentei de correr Sete cavalos a fio. O primeiro era cinzento Com sonhos de água sem fundo E cor do norte o segundo Com ferraduras de prata. O terceiro era um mistério E o quarto cor de agonia. O quinto, de olhos em brasa, Era só prata e espanto. O sexto não se sabia Se era cavalo, se vento. Corria o sétimo tanto Que nem a cor se lhe via. Quanto mais ando mais meço As distâncias que há em mim Cada desejo é um fim E cada fim um começo.
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Natal de quê? De quem? Daqueles que o não têm? Dos que não são cristãos? Ou de quem traz às costas As cinzas de milhões? Natal de paz agora Nesta terra de sangue? Natal de liberdade Num mundo de oprimidos? Natal de uma justiça Roubada sempre a todos? Natal de ser-se igual Em ser-se concebido, Em de um ventre nascer-se, Em por de amor sofrer-se, Em de morte morrer-se, E de ser-se esquecido? Natal de caridade, Quando a fome ainda mata? Natal de qual esperança Num mundo todo bombas? Natal de honesta fé, Com gente que é traição, Vil ódio, mesquinhez, E até Natal de amor? Natal de quê? De quem? Daqueles que o não têm? Ou dos que olhando ao longe Sonham de humana vida Um mundo que não há? Ou dos que se torturam E torturados são Na crença de que os homens Devem estender-se a mão?
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Não hei-de morrer sem saber Qual a cor da liberdade. Eu não posso senão ser Desta terra em que nasci. Embora ao mundo pertença E sempre a verdade vença, Qual será ser livre aqui, Não hei-de morrer sem saber. Trocaram tudo em maldade, É quase um crime viver. Mas embora escondam tudo E me queiram cego e mudo, Não hei-de morrer sem saber Qual a cor da liberdade.
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Quando eu morrer Batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes Façam estalar no ar chicotes Chamem palhaços e acrobatas. Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza: A um morto nada se recusa, E eu quero por força ir de burro...
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Todos já vimos - Fernando Sylvan
Todos já vimos Nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão Retratos de meninas e meninos A defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos Nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão Retratos de cadáveres de meninos e meninas Que morreram a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos! E então?
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História antiga - Miguel Torga
Era uma vez, lá na Judeia, um rei, Feio bicho, de resto: Um cara de burro sem cabresto E duas grandes tranças. A gente olhava, reparava e via Que naquela figura não havia Olhos de quem gosta de crianças. E na verdade, assim acontecia, Porque um dia, O malvado, Só por ter o poder de quem é rei Ou não ter coração, Sem mais nem menos, Mandou matar quantos eram pequenos Nas cidades e aldeias da Nação. Mas, Por acaso ou milagre, aconteceu Que, num burrinho pela areia fora, Fugiu Daquelas mãos de sangue um pequenito Que o vivo sol da vida acarinhou; E bastou Esse palmo de sonho Para encher este mundo de alegria; Para crescer, ser Deus; E meter no inferno o tal das tranças, Só porque ele não gostava de crianças.
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A cena é muda e breve: Num lameiro, Um cordeiro A pastar ao de leve; Embevecida, a mãe ovelha deixa de remoer; E a vida Pára também, a ver.
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Não saibas: imagina...-Miguel Torga
Deixa falar o mestre, e devaneia... A velhice é que sabe, e apenas sabe Que o mar não cabe Na poça que a inocência abre na areia. Sonha! Inventa um alfabeto De ilusões... Um á-bê-cê secreto Que soletres à margem das lições... Voa pela janela De encontro a qualquer sol que te sorri! Asas? Não são precisas: Vais ao colo das brisas, Aias da fantasia...
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Outro natal, Outra comprida noite De consoada Fria, Vazia, Bonita só de ser imaginada. Que fique dela, ao menos, Mais um poema breve Recitado Pela neve A cair, ao de leve, No telhado.
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A galinha espertinha - António Manuel Couto Viana
Era uma vez uma galinha Que entrou pela cozinha, Onde havia uma panela, Mas sem nada dentro dela. Ouviu, então, A voz fraquinha do patrão Dizendo à cozinheira: - "Não se arranja Por aí uma canja? Estou cheio de fome." Pôs a galinha um ovo e disse: - Come." E fugiu sem demora, Antes que lhe chegasse a derradeira hora.
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O cão Que faz ão, ão É bom amigo como os que o são! É bom amigo, bom companheiro, É valente, fiel, verdadeiro, Leal, serviçal, E tem bom coração Que o diga o seu dono, se ele o tem ou não! Quem vem de fora, a gente E chega a casa, é o cão Quem diz primeiro, todo prazenteiro, Saltando e rindo Contente, E com olhos a brilhar de amor: - "Ora seja bem vindo O meu senhor" O cão Que faz ão, ão É bom amigo como os que o são!
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Coraçam já repousavas - Jorge de Aguiar (séc. XV)
Coraçam já repousavas, Já não tinhas sujeiçam, Já vivias, já folgavas; Pois porque te sojigavas Outra vez, meu coraçam? Sofre, pois te não sofreste Na vida que já vivias; Sofre, pois te tu perdeste, Sofre, pois não conheceste Como te outra vez perdias; Sofre, pois já livre estavas E quiseste sujeiçam; Sofre, pois te não lembravas Das dores de que escapavas: Sofre, sofre, coraçam!
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Coração já repousavas - Jorge de Aguiar (séc. XV) (Versão em gramática moderna )
Coração já repousavas, Já não tinhas sujeição, Já vivias, já folgavas; Pois porque te subjugavas Outra vez, meu coração? Sofre, pois te não sofreste Na vida que já vivias; Sofre, pois te tu perdeste, Sofre, pois não conheceste Como outra vez te perdias; Sofre, pois já livre estavas E quiseste sujeição; Sofre, pois te não lembravas Das dores de que escapavas: Sofre, sofre, coração!
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SECÇÃO COMUNIDADE EUROPEIA
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