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LISTA DE POETAS POR ORDEM ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME

O Sono - Álvaro de Campos

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.
Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono! ...

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As raparigas lá de casa - Emanuel Félix


Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar


(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa.

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Natália Correia - Ode à Paz


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego, dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,

deixa passar a Vida!

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Natália Correia - Poema II


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

 

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Natália Correia - O Espírito


Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

 

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Jorge Sousa Braga - Haicais


Escrevo
com os dedos ainda longos
da carícia

NENÚFARES

Um nenúfar flutua
na mesma água
que a lua


NOCTURNO DO PORTO

Rosas amarelas e vermelhas
e sem cheiro
vagueiam no nevoeiro


MAGNÓLIAS

Esqueceram-se das folhas
tão grande era a pressa
de florirem

 

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Mãe Ilha - Natália Correia


Nessa manhã as garças não voaram
E dos confins da luz um deus chamou.
Docemente teus cílios se fecharam
Sobre o olhar onde tudo começou.


A terra uivou. Todas as cores mudaram
O mar emudeceu. O ar parou.
Escuros véus de pranto o sol taparam
De azáleas lívidas a ilha se cercou.


A que pélago o esquife te levava?
Não ao termo. A não chorar os mortos.
Teu sumo espiritual florido ensina.


E se o mundo em ti principiava,
No teu mistério entre astros absortos,
Suavemente, ó mãe, tudo termina.

 

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Júpiter 1901 - Vitorino Nemésio

Nasci no ano em que se descobriu a Grande Perturbação de Júpiter.
Minha Mãe não deu por nada, meu Pai não era astrónomo,
Mas houve lá em casa uma grande perturbação na água do banho,
Que meu Pai, músico, acompanhava regulando encantado o seu
metrónomo.
E Júpiter, assim mimado, com pai por ele, saiu poeta,
Com seus doze satélites, quatro deles principais:
Serafina, Lourdes, Lídia, Isaura,
A Primeira Grande Perturbação de Júpiter
No ano em que nasci.
Elas em roda da banheira,
Meu Pai tocando flauta
(Serpentes? no ninho em mim)
E um céu de vapor de água,
Difracção de satélites...
Júpiter! Júpiter!
Tu és o Toiro de fumo
Que nunca terás Europa.

 

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Carta - Carlos Drummond de Andrade


Bem quisera escrevê-la

com palavras sabidas,

as mesmas, triviais,

embora estremecessem

a um toque de paixão.

Perfurando os obscuros

canais de argila e sombra,

ela iria contando

que vou bem, e amo sempre

e amo cada vez mais

a essa minha maneira

torcida e reticente,

e espero uma resposta,

mas que não tarde; e peço

um objeto minúsculo

só para dar prazer

a quem pode ofertá-lo;

diria ela do tempo

que faz do nosso lado

as chuvas já secaram,

as crianças estudam,

uma última invenção

(inda não é perfeita)

faz ler nos corações,

mas todos esperamos

rever-nos bem depressa.

Muito depressa, não.

Vai-se tornando tempo

estranhamente longo

à medida que encurta.

O que ontem disparava,

desbordado alazão,

hoje se paralisa

em esfinge de mármore,

e até o sono, o sono

que era grato e era absurdo

é um dormir acordado

numa planície grave.

Rápido é o sonho, apenas,

que se vai, de mandar

notícias amorosas

quando não há amor

a dar ou receber;

quando só há lembrança

ainda menos, pó,

menos ainda, nada,

nada de nada em tudo,

em mim mais do que em tudo,

e não vale acordar

quem acaso repousa

na colina sem árvores.

Contudo, esta é uma carta.

 

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Correspondência - Nuno Júdice


Vejo as nuvens que avançam do Atlântico

para o continente. E, por trás delas, como um pastor

exigente, o vento que as empurra. Depois,

as nuvens passam e volta o sol, com o azul

imutável das manhãs de outono, monótono e distante

como quem o olha, ao sair de casa, sem

tempo para pensar no tempo.



As nuvens, no entanto, continuam

o seu caminho: umas, desfazem-se em água

sobre campos vazios, ou descem para as grandes

cidades para as abraçar com um tédio

enevoado. As que me interessam, porém,

são as que sobem para norte, e ficam

mais frias à medida que as pressões continentais

abrandam o seu curso, Então, param

em dias cinzentos; e, por fim, escurecem

a tua alma, quando as olhas, e te apercebes

de que se aproxima um inverno

de solidão.



A não ser que leias, nesse obscuro céu,

esta carta que te mando.

 

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Que grande reinação - Fernando Pessoa


No comboio descendente

Vinha tudo à gargalhada,

Uns por verem rir os outros

E os outros sem ser por nada -

No comboio descendente

De Queluz à Cruz Quebrada...



No comboio descendente

Vinham todos à janela,

Uns calados para os outros

E os outros a dar-lhes trela -

No comboio descendente

Da Cruz Quebrada a Palmela...



No comboio descendente

Mas que grande reinação!

Uns dormindo, outros com sono,

E outros nem sim nem não

No comboio descendente

De Palmela a Portimão...

 

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Bartolomeu Dias - Miguel Torga


Eu não cheguei ao fim.
Dobrei o Cabo, mas havia em mim
Um herói sem remate.
Quando os loiros da fama me sorriam,
Aceitei o debate
Do meu destino predestinado
Com singelos destinos que teriam
Um futuro apagado,
Fosse qual fosse a glória prometida.
E sempre que uma nau entrenta o mar e o teme,
E regressa vencida,
Sou eu que venho ao leme
Com a Índia perdida

 

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De Passagem - Eugénio de Andrade

Vinham ao fim do dia,
Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.

Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e o ardor nos olhos fatigados.

Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome

 

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O Rei do Mar - Cecília Meireles


Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

 

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Aviso à Navegação - Joaquim Namorado


Alto aí!
Aviso à navegação!
Eu não morri:
Estou aqui
na ilha sem nome,
sem latitude nem longitude,
perdida nos mapas,
perdida no mar Tenebroso!
Sim, eu,
o perigo para a navegação!,
o dos saques e das abordagens,
o capitão da fragata
cem vezes torpedeada,
cem vezes afundada,
mas sempre ressuscitada!

Eu que aportei
com os porões inundados,
as torres desmoronadas,
os mastros e os lemes quebrados
- mas aportei!

E não espereis de mim a paz...

Aviso à navegação
Não espereis de mim a paz!
Que quanto mais me afundo
maior é a minha ânsia de salvar-me!

Que quanto mais um golpe me decepa
maior é a minha força de luar!

Não espereis de mim a paz!
Que na guerra
só conheço dois destinos
ou vencer - ai dos vencidos! -
ou morrer sob os escombros
da luta que alevantei!

- (Foi jeito que me ficou,
não me sei desinteressar
do jogo que me jogar.)

Não espereis de mim a paz,

aviso à navegação!
Não espereis de mim a paz
que vos não sei perdoar!

 

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O Amor e o Mar- 2 - Eduardo Chirinos


Contemplar o mar é contemplar uma longuíssima censura,
humedecer os olhos com palavras que o tempo não destrua
e dispor-se a suportar o peso amargo dos anos.
Ouvir o mar é ouvir uma antiquíssima linguagem.
A sua espuma é a vertigem, a vã transparência
que enlouquece de amor os amantes.
Deste-me os olhos para ver a transparência
porque o mar é também uma longuíssima carícia.
Soube-o em prolongadas tardes de silêncio e dilacerante abandono,
tardes em que o amor e a solidão não eram apenas duas palavras
mas sim uma vasta paisagem que só admitia a tua presença.

Para chegar a ti tropecei muitas vezes.
Noites inteiras contando um a um os teus cabelos,
beijando com devoção a ponta dos pés, imaginando
o teu rosto no rosto de todas as mulheres, a tua voz
em centenas de bocas e lábios inúteis.
A tua voz é a voz do mar, a voz que me chama de dentro
com o seu abismo e as profundidades
com os seus peixes e as suas ondas e as suas ilhas desertas.
É o teu corpo
o que me chama e me redime do erro.

Para chegar a ti tropecei muitas vezes.
noites inteiras a pronunciar um nome, e era o teu.
Noites inteiras a acariciar um corpo, e era o teu.
Anos e anos a arrancar com paciência as penas de uma ave
para caminhar sem rumo até uma porta
sem saber que tu eras essa porta.
O antigo silêncio que ainda me fala entre as ondas.

 

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Soneto de Áspera Resignação - David Mourão Ferreira


Não me digas segredos nessa voz
em que dizes também o que não dizes.
Fica o silêncio ainda mais atroz
depois de entremostradas as raízes.

Prefiro que não digas nada, nada.
Que não sejas arbusto nem canção,
mas sombra entreaberta, recortada
por um lívido e breve coração.

Já que não podes dar-me o que eu sonhara
- inteireza de ramos e raiz -,
ao menos dá-me, intacta, a sombra clara
onde se esbatam vultos e perfis.

Pois nesta solidão melhor é ter
a sombra que um segredo de mulher.

 

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Soneto dos Quartos de Aluguer - David Mourão Ferreira


O amor é só de quem os olhos cerra
no desalmado momento da entrega.
Cerrai-vos, olhos meus, antes que cega
vos cegue a lucidez que nos faz guerra.

Cerrai-vos, olhos meus, que os indiscretos
são punidos com leis muito severas...
Cerrados, sentireis... que primaveras!
Abertos, que vereis senão objectos?

E que abjectos objectos! tão prosaicos!:
tapetes de aluguer com flor's manchadas;
entre os pés do biombo, continuadas
as tábuas do soalho por mosaicos...

...Sempre esse frio sórdido, a seguir
ao fogo em que nos qu'remos consumir!

 

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Gastão Cruz - Estrada


A bátega do corpo

incorporado num céu feito de

carne

desenha a fogo a estrada que reúne

as margens que separa

se o futuro

se apaga no futuro se todo o tempo

é guerra e

a pele dos homens tatuagem

 

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Fernando Namora - Cantar D´Amigo


Estrangeiro! talharam-nos em redor fossos, limites
e o cerco das fronteiras.
Estrangeiro! Ninguém entendeu, e nem tu, estrangeiro,
que entre nós não existem cordilheiras.

Ficaste de mãos desastradas, indiferentes,
quando a minha vida roçou a tua vida.
De olhos parados, indiferentes,
quando passei a teu lado.

Estrangeiro! Ficou-me esse desperdício de um adeus
que as tuas mãos frias não disseram,
nem os teus olhos vidrados,
nem a tua boca selada,
mas que eu pressenti, como alguém á beira de um cais,
ao ver sair barcos com gente que nos é estranha,
agitando lenços estranhos
alguém que sofre por nada.
Iludimos a vida, amigo!
E como para ultrapassar as fronteiras
os fossos,
as ironias
bastaria um só olhar!...
Não, estrangeiro! Vamos misturar o sangue dos rios
o abismo dos mapas
fazer qualquer coisa! misturar, misturar.

 

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Notícias-gracia plena- Maria da Graça Ferraz

E eu aqui
Calada, a recordar
o amor e a rir de mim
Televisão desligada!
Sigo colando figurinhas
no meu almanaque
Conta-me: Já invadiram o Iraque?
Já botaram a mão no petróleo?
Algum pai matou filho
ou vice-versa ou vide-verso?
Algum bandido virou herói
deste mísero circo
ou tema de escola de samba
para desfile na avenida?

E eu aqui
inerte...assombrada
a lembrar o amor
apaixonado!
Conta-me: Os tais Estados Unidos
leram a história de Roma,
da Pérsia, do Egito?
Então eles nada sabem
sobre o declínio dos Impérios?
Nunca leram sobre Napoleão,
Genghis khan, Satan?

E eu aqui
escondida do mundo,
no meu porão,
vou lendo Pessoa, Gedeão, Bilac
Não! Nada quero saber
da Coréia, do Iraque,
das assembleias da ONU
" O palhaço sem amor
é um assassino sério"-
acreditem-me

E eu aqui
sem abrigo antiaéreo
sem máscaras de oxigénio
Dona de casa, poeta, médica-
aumento o som estéreo:
Ouço Beethoven- A Patética.

 

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Elegia das águas negras para Che Guevara - Eugénio de Andrade



Atado ao silêncio, o coração ainda

pesado de amor, jazes de perfil,

escutando, por assim dizer, as águas

negras da nossa aflição.



Pálidas vozes em prado procuram

O potro mais livre, a palmeira

mais alta sobre o lago, o barco talvez

Ou o mel entornado da nossa alegria.



Olhos apertados pelo medo

aguardam na noite o sol do meio-dia,

a face viva do sol onde cresces,

onde te confundes com os ramos

de sangue do verão ou o rumor

dos pés brancos da chuva nas areias.



A palavra, como tu dizias, chega

húmida dos bosques: temos que semeá-la;

chega húmida da terra: temos que defendê-la;

chega com as andorinhas

que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.



Cada palavra tua é um homem de pé;

cada palavra tua

faz do orvalho uma faca,

faz do ódio um vinho inocente

para bebermos contigo

no coração em redor do fogo.

 

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Che Guevara - Sophia de Mello Breyner Andresen

Contra ti se ergue a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra.

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece.

 

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Ana Hatherly - Que é voar?


Que é voar?

É só subir no ar,

levantar da terra o corpo,os pés?

Isso é que é voar?

Não.



Voar é libertar-me,

é parar no espaço inconsistente

é ser livre,leve,independente

é ter a alma separada de toda a existência

é não viver senão em não -vivência



E isso é voar?

Não.



Voar é humano

é transitório , momentâneo...



Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:

isso é partir

e não voltar.

 

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Olavo Bilac - Língua Portuguesa


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
Abruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o tron e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

 

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Hasta siempre Comandante - Carlos Puebla


Aprendimos a quererte
desde la histórica altura
donde el sol de tu bravura
le puso un cerco a la muerte.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Tu mano gloriosa y fuerte
sobre la historia dispara
cuando todo Santa Clara
se despierta para verte.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Vienes quemando la brisa
con soles de primavera
para plantar la bandera
con la luz de tu sonrisa.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Tu amor revolucionario
te conduce a nueva empresa
donde esperan la firmeza
de tu brazo libertario.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Seguiremos adelante
como junto a ti seguimos
y con Fidel te decimos:
hasta siempre Comandante.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

 

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A g n u s D e i- Súplica - Charles Péguy


Oh! não, não suplicamos que o grão sob a mó
Seja jamais reposto no âmago da espiga,
Oh! não, não suplicamos que a alma errante e só
Jamais a florido horto seja devolvida.
Oh! não, não suplicamos que ao ramo da vinha
A uva já calcada venha a ser resposta,
E que o pesado zangão ou a abelhazinha
A se fartar de orvalho ali de novo possa.

Oh! não, não suplicamos que a vermelha rosa
Seja jamais reposta na haste da roseira,
E que o grande balaio e a cestinha mimosa
Retornem como vime a nova ribanceira.

Oh! não, não suplicamos que a folha já escrita
Riscada venha a ser do livro de memória,
E que a grave suspeita numa nova história
Possa vir reformar a pena já prescrita.

Oh! não, não suplicamos que o caule vergado
Reposto possa ser no livro da natura,
Que o pesado botão com a jovem nervura
Rompa a casca de novo e surja rebrotado.

Oh! não, não suplicamos que o ramo esmagado
Reverdeça jamais no livro da graça,
Que o pesado rebento ou que uma nova raça
Renasça jamais no tronco fulminado.

Oh! não, não suplicamos que o galho esfolhado
Regresse uma vez mais em jovem primavera,
Ou que a pesada seiva ou uma jovem era
Salve uma copa só no bosque já inundado.

Oh! não, não suplicamos que a prega da toalha
Seja recomposta antes que volte o Senhor,
E que este vosso servo ou o infeliz que for
Jamais se veja livre da pesada malha.

Oh! não, não suplicamos que a sublime mesa
A não ser para um Deus de novo se refaça,
Mas tão grande conviva jamais com certeza
Reaqueçerá suas mãos em nossa chama baça.

Oh! não, não suplicamos que nós degredados
Voltemos a seguir por caminho de rosas,
Rainha, que nos baste manter-nos honrados,
Não pedimos senão vossa ajuda piedosa.

Não vos pedimos não trilha que seja grácil,
Mas vos pedimos sim que vosso amor nos queira.
Não vos pedimos não trilha que seja fácil,
Mas vos pedimos sim vossa guarda guerreira.

Ó Rainha do Mar, Porto da Boa Sorte,
Não vos pedimos não nenhum desses reparos,
Senão que de guardarmos sob o vosso amparo
Fidelidade sim mais forte do que a morte.

 

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Ana Akhmatova - Ciumento, Terno


Ciumento, terno, inquieto,

como um sol divino amava.

Matou-se o pássaro branco,

porque ao passado cantava.



Entrava ao poente em meu quarto:

"Ama-me e ri, escreve versos!"

Enterrei o alegre pássaro

além da fonte, ao pé do tronco antigo.



Prometi-lhe não chorar.

Tenho em pedra o coração.

E é como se em toda a parte

ouvisse a doce canção.

 

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Ana Akhmatova - Como Pedra Branca



Como pedra branca no fundo do poço

dentro de mim está uma memória.

Nem quero afastá-la, nem posso:

é sofrimento e é prazer e glória.



Julgo que quem olhar-me bem de perto

dentro em meus olhos logo pode vê-la.

E ficará mais triste e pensativo

que alguém que escute uma anedota obscena.



Eu sei que os deuses metamorfoseavam

os homens em coisas sem tirar-lhes alma.

Para que o espante da tristeza dure sempre,

em coisa da memória te mudei.

 

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Luís Eusébio - Inominado


Primeiro foi o sonho,
Inopinado e louco.
Depois a audácia,
O corrupio, o sufoco.
Foi a nostalgia.
A dor da saudade.
Foi do trabalho o tesão.
Foram dúvidas e inseguranças.
Foi o coma da traição.
Foram os cansaços.
As olheiras. Os olhos baços.
Foram milhentas milhas
Percorridas em mil regaços.
Foi a solidão.
E, foi sempre o sonho.
Sempre a solidão e,
Dos medos o mais medonho.
Foi o bem querer!...
Apenas e só o bem querer!...

Percorri mil anos
A velocidade da luz.
Ultrapassei nebulosas.
Cabeceei asteróides
Para balizas imaginárias.
Doei os anéis de Saturno
A ninfas alucinadas.
Contornei buracos negros.
Fiz amor nas crateras da Lua
Com camisas de Vénus.
Fui amante duma marciana,
Louca e insaciável,
Loura e insociável.
Mandei para os raios que o partam...
......O Sol.
Passeei-me por Mercúrio...
......Crómio.
Julguei sarar minhas feridas.

Perdi Galateia. Perdi tudo.
E, eu próprio, perdi-me
Em qualquer parte.

Percorri mil anos
A velocidade da luz!...
De repente, o breu.
A ausência total de luz.
De repente, a dor.
De repente, a mais profunda,
A mais pesada das solidões:
Eu em busca de mim!

 

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Anúncio da Rosa - Carlos Drummond de Andrade


Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas histórias, todas catárticas, todas patéticas.

Vêde o caule,
traço indeciso.

Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

Vinde, vinde,
olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso,.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.

Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.

 

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Palavras cobardes - Daniel Camacho


Porque nasce o pensamento
extenso no olhar que não pensa
quando se pensa com o tempo
e o tempo nos devota indiferença?
Porque recortas a linha do horizonte
das asas do saber que finge
fingindo fugir do infinito que se restringe,
contradiz e contrapõe à doçura da morte?
Porque se suspendem os ecos
secos nas escarpas desumanas da solidão,
sobressaem inocentes restos de coisas opostas
na superfície exposta aos derrames de ilusão?
Porque te confessas à pressa?
Porque tens pressa?
Tens medo que o medo vença?
E se vencer, apaga-se a crença?
Porque saltam as palavras cobardes
na linha da frente do combate,
no hálito das gentes que o silêncio abate,
se as trémulas páginas onde o sangue arde
rondam os corpos vestidos pelo disfarce?

 

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Meu pensamento é um rio subterrâneo - Fernando Pessoa



Meu pensamento é um rio subterrâneo.
Para que terras vai e donde vem?
Não sei... Na noite em que o meu ser o tem
Emerge dele um ruído subitâneo

De origens no Mistério extraviadas
De eu compreendê-las..., misteriosas fontes
Habitando a distância e ermos montes
Onde os momentos são a Deus chegados...

De vez em quando luze em minha mágoa,
Como um farol nem mar desconhecido,
Um movimento de correr, perdido
Em mim, um pálido soluço de água...

Eu relembro de tempos mais antigos
Que a minha consciência da ilusão
Águas divinas percorrendo o chão
De verdores uníssonos e amigos,

E a ideia de uma Pátria anterior
À forma consciente do meu ser
Dói-me no que desejo, e vem bater
Como uma onda de encontro à minha dor.

Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto
Da minha alma, perdido som incerto,
Como um esterno rio indescoberto,
Mais que a ideia de rio certo e abstracto...

E p'ra onde é que ele vai, que se extravia
Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?
Em que frios de Assombro é que arrefece?
De que névoas soturnas se anuvia?

Não sei... Eu perco-o... E outra vez regressa
A luz e a cor do mundo claro e actual,
E na interior distância do meu Real
Como se a alma acabasse, o rio cessa...

 

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Olegário Mariano - O Enamorado das Rosas


Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,

Ouvindo a água da fonte que murmura,

Rego as minhas roseiras com ternura,

Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.


Cada uma tem um suave movimento

Quando a chamar minha atenção procura

E mal desabrochada na espessura,

Manda-me um gesto de agradecimento.


Se cultivei amores às mancheias,

Culpa não cabe às minhas mãos piedosas

Que eles passassem para mãos alheias.


Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,

Alimento a ilusão de que essas rosas,

Ao menos essas rosas, sejam minhas.

 

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Perfume da Rosa - Almeida Garrett


Quem bebe, rosa, o perfume
Que de teu seio respira?
Um anjo, um silfo? Ou que nume
De seu trono te ajoelha,
E esse néctar encantado
Bebe oculto, humilde abelha?
— Ninguém? — Mentiste: essa frente
Em languidez inclinada,
Quem te pôs assim pendente?
Dize, rosa namorada.
E a cor de púrpura viva
Como assim te desmaiou?
E essa palidez lasciva
Nas folhas quem te pintou?
Os espinhos que tão duros
Tinhas na rama lustrosa,
Com que magos esconjuros
Tos desarmaram, ó rosa?
E porquê, na hástia sentida
Tremes tanto ao pôr do Sol?
Porque escutas tão rendida
O canto do rouxinol?
Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te na folhagem?
Nas águas desse retiro
Não espreitei a tua imagem?
Não a vi aflita, ansiada...
— Era de prazer ou dor? –
Mentiste, rosa, és amada,
E tu também tu amas, flor.
Mas ai!, se não for um nume
O que em teu seio delira,
Há-de matá-lo o perfume
Que nesse aroma respira.

 

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Mignonne, allons voir si la rose - Pierre de Ronsard (1524-1585)


Mignonne, allons voir si la rose
Qui ce matin avait déclose
Sa robe de pourpre au soleil
A point perdu cette vêprée
Les plis de sa robe pourprée,
Et son teint au vôtre pareil.

Las! voyez comme en peu d’espace,
Mignonne, elle a dessus la place
Las, las, ses beautés laissé choir!
O vraiment marâtre Nature,
Puisqu’une telle fleur ne dure
Que du matin jusques au soir!

Donc, si vous me croyez, mignonne,
Tandis que votre âge fleuronne
En sa plus verte nouveauté,
Cueillez, cueillez votre jeunesse:
Comme à cette fleur, la vieillesse
Fera ternir votre beauté.

 

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Rosas - Afonso Henriques da Costa Guimarães

Rosas que já vos fostes, desfolhadas
Por mãos também que Já foram, rosas
Suaves e tristes! Rosas que as amadas,
Mortas também, beijaram suspirosas...

Umas rubras e vãs, outras fanadas,
Mas cheias do calor das amorosas...
Sois aroma de almofadas silenciosas,
Onde dormiram tranças destrançadas.

Umas brancas, da cor das pobres freiras,
Outras cheias de viço de frescura,
Rosas primeiras, rosas derradeiras!

Ai! Quem melhor que vós, se a dor perdura,
Para coroar-me, rosas passageiras,
O sonho que se esvai na desventura?

 

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Manhã no Sado - Sebastião da Gama


Brancas, as velas
eram sonhos que o rio sonhava alto,
Meninas debruçadas em janelas,
via-se, à flor azul das águas, as gaivotas.
E a Manhã quieta (sorrindo, linda, vinha vindo a
Primavera...)
punha os pés melindrosos entre as conchas.
Derivavam jardins imponderáveis
dos seus passos de ninfa
e tremiam as conchas
de súbitas carícias.

Longe era tudo : o medo dos naufrágios,
as angústias dos homens, o desgosto,
os esgares das tragédias e comédias
de cada um, os lutos, as derrotas.
Longe a paz verdadeira das crianças
e a teimosia heróica dos que esperam.

Ali, à beira-rio,
de olhos só para o rio, de ouvidos surdos
ao que não é a música das águas,
um sossego alegórico persiste.
Nem o arfar das velas o perturba.
Nem o rumor dos seios capitosos
da Manhã, que nas águas desabrocham
e flutuam, doentes de perfume.
Nem a presença humana do Poeta
- sombra que a pouco e pouco se ilumina
e se dilui, anónima, na aragem...

 

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De Relance, O Alentejo - Jorge de Sena


Um céu abafadiço, um ar de ausência
esperando nuvens imóveis no céu baixo.

A terra, já das ceifas recolhida,
alonga-se manchada a flores tardias,

roxas, vermelhas, amarelas, brancas,
como penugem de esquecida Primavera.

Por entre os campos, os cordões rugosos
dos caminhos para toda a parte,

menos para os campos, que pacientemente evitam.
Na linha do horizonte próxima ou distante

conforme as ténues cristas da planura imensa,
um claror de céu, um tufo de arvoredo,
alternadamente se tocam e se afastam.

De súbito, num alto que a planície esconde,
as casas surgem brancas e compactas.

Como surgem, mergulham
na sombra poeirenta de azinhagas em ruínas.

Ainda se demora uma torre antiga,
escura, com ameias e janelas novas,
caiadas.

Um rio se advinha. Mas, de ao pé da ponte.
de novo apenas o ondular da terra,
um crespo recordar só de searas idas.

 

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Trovas à Morte de D. Inês de Castro - Garcia de Resende


Qual será o coração

tão cru e sem piedade,

que lhe não cause paixão

uma tão grã crueldade

e morte tão sem razão?

Triste de mim, inocente,

que, por ter muito fervente

lealdade, fé, amor

ao príncipe, meu senhor,

me mataram cruamente!



A minha desaventura

não contente d’acabar-me,

por me dar maior tristura

me foi pôr em tant’altura,

para d’alto derribar-me;

que, se me matara alguém,

antes de ter tanto bem,

em tais chamas não ardera,

pai, filhos não conhecera,

nem me chorara ninguém.



Eu era moça, menina,

por nome Dona Inês

de Castro, e de tal doutrina

e virtudes, qu’era dina

de meu mal ser ao revés.

Vivia sem me lembrar

que paixão podia dar

nem dá-la ninguém a mim:

foi-m’o príncipe olhar,

por seu nojo e minha fim.



Começou-m’a desejar

trabalhou por me servir;

Fortuna foi ordenar

dous corações conformar

a uma vontade vir.

Conheceu-me, conheci-o,

quis-me bem e eu a ele,

perdeu-me, também perdi-o;

nunca té morte foi frio

o bem que, triste, pus nele.



Dei-lhe minha liberdade,

não senti perda de fama;

pus nele minha verdade,

quis fazer sua vontade,

sendo mui formosa dama.

Por m’estas obras pagar

nunca jamais quis casar;

pelo qual, aconselhado

foi el-rei qu’era forçado,

pelo seu, de me matar.



Estava mui acatada,

como princesa servida,

em meus paços mui honrada,

de tudo mui abastada,

de meu senhor mui querida.

Estando mui de vagar,

bem fora de tal cuidar,

em Coimbra, d’assossego,

pelos campos do Mondego

cavaleiros vi somar.



Como as cousas qu’hão de ser

logo dão no coração,

comecei entristecer

e comigo só dizer:

“Estes homens onde irão?”

E tanto que perguntei,

soube logo qu’era el-rei.

Quando o vi tão apressado,

meu coração trespassado

foi, que nunca mais falei.



E quando vi que descia,

saí a porta da sala,

devinhando o que queria;

com grão choro e cortesia

lhe fiz uma triste fala.

Meus filhos pus de redor

de mim com grande humildade;

mui cortada de temor

lhe disse: - “Havei, senhor,

desta triste piedade!



“Não possa mais a paixão

que o que deveis fazer;

metei nisso bem a mão,

qu’é de fraco coração

sem porquê matar mulher;

quanto mais a mim, que dão

culpa não sendo razão,

por ser mãe dos inocentes

qu’ante vós estão presentes,

os quais vossos netos são.



“E tem tão pouca idade

que, se não forem criados

de mim, só com saudade

e sua grande orfandade

morrerão desamparados.

Olhe bem quanta crueza

fará nisto Voss’Alteza,

e também, senhor, olhai

pois do príncipe sois pai,

não lhe deis tanta tristeza.



“Lembre-vos o grand’amor

que me vosso filho tem,

e que sentir grã dor

morrer-lhe tal servidor

por lhe querer grande bem.

Que, s’algum erro fizera,

fora bem que padecera

e qu’estes filhos ficaram

orfãos tristes e buscaram

quem deles paixão houvera;



“Mas, pois eu nunca errei

e sempre mereci mais,

deveis, poderoso rei,

não quebrantar vossa lei,

que, se morro, quebrantais.

Usai mais de piedade

que de rigor nem vontade,

havei dó, senhor, de mim,

não me deis tão triste fim,

pois que nunca fiz maldade!”



El-rei, vendo como estava,

houve de mim compaixão

e viu o que não olhava:

qu’eu a ele não errava

nem fizera traição.

E vendo quão de verdade

tive amor e lealdade

ao príncipe, cuja são,

pôde mais a piedade

que a determinação.



Que, se m’ele defendera

que seu filho não amasse,

e lh’eu não obedecera,

então com razão pudera

dar-m’a morte qu’ordenasse;

mas vendo que nenhum’hora,

dês que nasci até’gora,

nunca disso me falou,

quando se disto lembrou,

foi-se pela porta fora.



Com seu rosto lagrimoso,

co propósito mudado,

muito triste, mui cuidoso,

como rei mui piedoso,

mui cristão e esforçado.

Um daqueles que trazia

consigo na companhia,

cavaleiro desalmado,

de trás dele, mui irado,

estas palavras dizia:



“-Senhor, vossa piedade

é digna de repreender,

pois que, sem necessidade,

mudaram vossa vontade

lágrimas duma mulher.

E quereis qu’abarregado,

com filhos, como casado,

estê, senhor, vosso filho?

De vós mais me maravilho

que dele, qu’é namorado.



“Se a logo não matais,

não sereis nunca temido

nem farão o que mandais,

pois tão cedo vos mudais

do conselho qu’era havido.

Olhai quão justa querela

tendes, pois, por amor dela,

vosso filho quer estar

sem casar e nos quer dar

muita guerra com Castela.



“Com sua morte escusareis

muitas mortes, muitos danos,

vós, senhor, descansareis,

e a vós e a nós dareis

paz para duzentos anos.

O príncipe casará

filhos de benção terá,

será fora de pecado;

qu’agora será anojado,

amanhã lh’esquecerá.”



E ouvindo seu dizer,

el-rei ficou mui torvado

por em tais estremos ver,

e que havia de fazer

ou um ou outro, forçado.

Desejava dar-me vida,

por lhe não ter merecida

a morte nem nenhum mal:

sentia pena mortal

por ter feito tal partida.



E vendo que se lhe dava

a ele tod’esta culpa,

e que tanto o apertava,

disse àquele que bradava:

“-Minha benção me desculpa.

Se o vós quereis fazer,

fazei-o sem mo dizer,

qu’eu nisso não mando nada,

nem vejo essa coitada

por que deva de morrer.”



Dous cavaleiros irosos,

que tais palavras lh’ouviram,

mui crus e não piedosos,

perversos, desamorosos,

contra mim rijo se viram;

com as espadas na mão

m’atravessam o coração,

a confissão me tolheram:

este é o galardão

que meus amores me deram.

 

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