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LISTA DE POETAS POR ORDEM
ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME Cantiga dos pastores - Adélia Prado
À meia noite no pasto, guardando nossas vaquinhas, um grande clarão no céu guiou-nos a esta lapinha. Achamos este Menino entre Maria e José, um menino tão formoso, precisa dizer quem é? Seu nome santo é Jesus, Filho de Deus muito amado, em sua caminha de cocho dormia bem sossegado. Adoramos o Menino nascido em tanta pobreza e lhe oferecemos presentes de nossa pobre riqueza: a nossa manta de pele, o nosso gorro de lã, nossa faquinha amolada, o nosso chá de hortelã. Os anjos cantavam hinos cheios de vivas e améns. A alegria era tão grande e nós cantamos também: Que noite bonita é esta em que a vida fica mansa, em que tudo vira festa e o mundo inteiro descansa? Esta é uma noite encantada, nunca assim aconteceu, os galos todos saudando: O Menino Jesus nasceu!
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Cartão de Natal - João Cabral de Melo Neto
Pois que reinaugurando essa criança pensam os homens reinaugurar a sua vida e começar novo caderno, fresco como o pão do dia; pois que nestes dias a aventura parece em ponto de voo, e parece que vão enfim poder explodir suas sementes: que desta vez não perca esse caderno sua atracção núbil para o dente; que o entusiasmo conserve vivas suas molas, e possa enfim o ferro comer a ferrugem o sim comer o não.
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Meu coração nunca pára Pra comparar, solta amarras, Vive seu tempo presente: Se ferido, em mim se ampara; Mas quando sara e se sente Contente, fica eloquente, Feito algazarra de araras.
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Quatro Haicais
Quatro horas soaram Levantei-me nove vezes Para ver a lua.
Fecho a minha porta. Silencioso vou deitar-me Prazer de estar só
A cigarra... Ouvi: Nada revela em seu canto Que ela vai morrer
Quimonos secando Ao sol. Oh aquela manguinha Da criança morta!
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O Guardador de Rebanhos IX- Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
I Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e com os pés E com o nariz e com a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
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O Próprio Ser Eu Canto - Walt Whitman
O próprio ser eu canto: Canto a pessoa em si, em separado _ embora use a palavra Democracia e a expressão Massa. Eu canto o Corpo Da cabeça aos pés: Nem só o cérebro Nem só a fisionomia Tem valor para a Musa _ digo que a forma completa é muito mais valiosa, e tanto a Fêmea quanto o Macho eu canto. A vida plena de paixão, Força e pulsam, Preparada para as acções mais livres Com suas leis divinas _O Homem Moderno eu canto.
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Um dia, Ela desenhará em chãos longínquos a casa só nossa, que eu farei com estas mãos. Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés. Às telhas — hei de aprontar o barro mais macio, e as formas serão por mim, uma a uma, completadas; Ela as alisará longamente, — seus dedos molhados de um profundo silêncio: só os pássaros.
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Outros Terão - Fernando Pessoa
Outros terão Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo. A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim. "Que importa?" Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar-se veio. "Quem tem de ser?" Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece. Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão.
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Ah quanta melancolia! - Fernando Pessoa
Ah quanta melancolia! Quanta, quanta solidão! Aquela alma, que vazia, Que sinto inútil e fria Dentro do meu coração! Que angústia desesperada! Que mágoa que sabe a fim! Se a nau foi abandonada, E o cego caiu na estrada - Deixai-os, que é tudo assim. Sem sossego, sem sossego, Nenhum momento de meu Onde for que a alma emprego - Na estrada morreu o cego A nau desapareceu.
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Minha mulher a solidão - Fernando Pessoa
Minha mulher, a solidão, Consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é o coração Ter este bem que não existe! Recolho a não ouvir ninguém, Não sofro o insulto de um carinho E falo alto sem que haja alguém: Nascem-me os versos do caminho. Senhor, se há bem que o céu conceda Submisso à opressão do Fado, Dá-me eu ser só - veste de seda -, E fala só - leque animado.
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Por quem foi que me trocaram? - Fernando Pessoa
Por quem foi que me trocaram Quando estava a olhar pra ti? Pousa a tua mão na minha E, sem me olhares, sorri. Sorri do teu pensamento Porque eu só quero pensar Que é de mim que ele está feito É que tens para mo dar. Depois aperta-me a mão E vira os olhos a mim... Por quem foi que me trocaram Quando estás a olhar-me assim?
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Era um caminho - Mário Quintana
Era um caminho que de tão velho, minha filha, já nem mais sabia aonde ia... Era um caminho velhinho, perdido... Não havia traços de passos no dia em que por acaso o descobri: pedras e urzes iam cobrindo tudo. O caminho agonizava, morria sozinho... Eu vi... Porque são os passos que fazem os caminhos!
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Science- Fiction I -José Saramago
Talvez o nosso mundo se convexe Na matriz positiva doutra esfera. Talvez no interspaço que medeia Se permutem secretas migrações. Talvez a cotovia, quando sobe, Outros ninhos procure, ou outro sol. Talvez a cerva branca do meu sonho Do côncavo rebanho se perdesse. Talvez do eco dum distante canto Nascesse a poesia que fazemos. Talvez só amor seja o que temos, Talvez a nossa coroa, o nosso manto.
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Falavam-me de amor - Natália Correia
Quando um ramo de doze badaladas se espalhava nos móveis e tu vinhas solstício de mel pelas escadas de um sentimento com nozes e com pinhas, menino eras de lenha e crepitavas porque do fogo o nome antigo tinhas e em sua eternidade colocavas o que a infância pedia às andorinhas. Depois nas folhas secas te envolvias de trezentos e muitos lerdos dias e eras um sol na sombra flagelado. O fel que por nós bebes te liberta e no manso natal que te conserta só tu ficaste a ti acostumado.
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Semeador de versos? Quem me dera! Não haveria homem mais feliz. Ter o espírito em flor na primavera, E o corpo, no inverno, com raiz. Não. Retalho apenas a desilusão... À teimosa procura Dum singular e único sinal Que todo me defina e me resuma, Vou desfolhando a rosa da expressão E deixando no chão Caídas as palavras, uma a uma.
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Não quero rosas - Fernando Pessoa
Não quero rosas, desde que haja rosas. Quero-as só quando não as possa haver. Que hei-de fazer das coisas Que qualquer mão pode colher? Não quero a noite senão quando a aurora A fez em ouro e azul se diluir. O que a minha alma ignora É isso que quero possuir. Para quê?... Se o soubesse, não faria Versos para dizer que inda o não sei. Tenho a alma pobre e fria... Ah, com que esmola a aquecerei?...
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Caminho sem pés e sem sonhos - Daniel Faria
Caminho sem pés e sem sonhos só com a respiração e a cadência da muda passagem dos sopros caminho como um remo que se afunda. os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes para que a elevação e a profundidade se conjuguem. avanço sem jugo e ando longe de caminhar sobre as águas do céu.
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A Meu Favor - Alexandre O'Neill
A meu favor Tenho o verde secreto dos teus olhos Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor O tapete que vai partir para o infinito Esta noite ou uma noite qualquer A meu favor As paredes que insultam devagar Certo refúgio acima do murmúrio Que da vida corrente teime em vir O barco escondido pela folhagem O jardim onde a aventura recomeça.
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Domingo soalheiro - Sueli Martinho
Para mim, Bach é um caso de Paixão. Arromba-me a porta da alma. Perto da intimidade, adoça-me a revolta. Ilumina-me o silêncio. Engana-me o tempo. Há uma vide purpurina a emprestar outono a um vitral primaveril. Entre os graves frios e os rigorosos calores. Um arrepio morno no calmo e secreto limite de tudo. Na toma de mim. Há ainda um sino que dobra, matinal, no campanário barroco da igreja matriz. Uma saudade que vibra num choupo dourado. Um queixume que espevita na serpente impávida do rio. No aroma desperto do vinho. Há um intenso azul a tingir, sem vergonha, o céu. Uma nuvem fugaz que se dissipa apressada. Um pedaço de Sol na teimosia de zénite. No cedo da sede. No último lamento do Verão. E é este suspiro do tempo que fustiga a sintonia dos objectos, geometricamente arrumados. E enaltece o que não tem textura ou explicação. Regresso a Bach. E tudo é luz. Saudade. Doçura. Os objectos arrumei-os eu. Assim, geométricos. Mas só a música é minha. O espreguiçar dos sons, nas cores de um afecto sem tempo. Como é minha! E é canto de aves numa sedução tardia. E é paz. Um pacífico êxtase que tudo justifica. Feérico e verdadeiro, apesar de longínquo. Perfeito! Uma certeza para as horas envenenadas: Esta sou eu perante o pão de Bach, derramada nas palavras penitentes de um domingo soalheiro. Amen.
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Dinheiro, não, mas alegria. A difícil. Fantástica alegria das coisas muito simples e concretas: a moldura de um gesto, um copo de água, uma gota de música e de sol. (...)
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"Paraíso"-David Mourão Ferreira
Deixa ficar comigo a madrugada, para que a luz do Sol me não constranja. Numa taça de sombra estilhaçada, deita sumo de lua e de laranja. Arranja uma pianola, um disco, um posto, onde eu ouça o estertor de uma gaivota... Crepite, em derredor, o mar de Agosto... E o outro cheiro, o teu, à minha volta! Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, à cabeceira a luz do teu joelho, entre os lençóis o lume do teu peito... Podes partir. De nada mais preciso para a minha ilusão do Paraíso.
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Europeu, me dizem. Eivam-me de literatura e doutrina europeias e europeu me chamam. Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum pensamento europeu. É provável ... Não. É certo, mas africano sou. Pulsa-me o coração ao ritmo dolente desta luz e deste quebranto. Trago no sangue uma amplidão de coordenadas geográficas e mar Índico. Rosas não me dizem nada, caso-me mais à agrura das micaias e ao silêncio longo e roxo das tardes com gritos de aves estranhas. Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. Mas dentro de mim há savanas de aridez e planuras sem fim com longos rios langues e sinuosos, uma fita de fumo vertical, um negro e uma viola estalando.
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Nenhum Monumento - Rui Knopfli
Não são aparentes em ti as marcas da grandeza, nenhum monumento desfigura ou altera a monotonia sem convulsões do teu rosto quase anónimo. A escassez de ogivas, arcobotantes, rosáceas, burilados portais, cobra-la tu na gravidade das tuas sombras e do teu silêncio. Não vem sequer da tua voz a opressão que cerra as almas de quantos de ti se acercam. Não demonstras, não afirmas, não impões. Elusiva e discretamente altiva, fala por ti apenas o tempo.
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Eis que regresso e vos pergunto: Virei modificado? Mais simples? mais humanizado ? Ou serei para vós como um defunto Inutilmente ressuscitado? Perdão, se venho sem loucura! Deveria, decerto, regressar A correr, a gritar, a suar, a sangrar... E com um brilho no olhar (O brilho de quem acha o que procura). Não trago o som da vaga que rebenta, Mas secretos marulhos ciciados, Sonhos ainda quentes da placenta. - nem grandes penas minha mente aumenta, Como fazem, à volta, os exilados. O meu lar de papel inda está quente? Quanta vez a poesia diz à gente, Como a vida aos mendigos: Paciência!... Mas maior é a dor de quem pressente(*) Que ninguém deu p’la sua ausência. Ah, que este simples alibi: Andei, Por onde tanto sofre o servo como o rei, Humanamente vos faça Perdoar-me esta mordaça Com que parti e voltei!
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Entre uma data e outra a leitura dos gregos. Eles sabiam-no. Por isso me comove a visão da primeira vinha. O vinho bebo-o, cor de cravo, em mesa de granito por entre a espiral das cepas, aroma acidulado rescendendo ao paladar da aurora. De olhos na terra. Este é o seu sangue.
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"A pedra no caminho"-Rui Knopfli
"Toma essa pedra em tua mão, toma esse poliedro imperfeito, duro e poeirento. Aperta em tua mão esse objecto frio, redondo aqui, acolá acerado. redondo aqui, acolá acerado. Segura com força esse granito bruto. Uma pedra, uma arma em tua mão. Uma coisa inócua, todavia poderosa, tensa, em sua coesão molecular, em suas linhas irregulares. Ao meio-dia em ponto, na avenida ensolarada, tu és um homem um pouco diferente. Ao meio-dia na avenida tu és um homem segurando uma pedra. Segurando-a com amor e raiva."
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Indício velado - Vitorino Nemésio
Não toques, distância, no seu cabelo molhado; Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso, Uma imagem será o seu único peso, Um pensamento o único beijo que me há dado. Que o Índico persiga o indício velado; Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso - Mas não para morrer: para menos desprezo; E eu próprio fique em meu amor atenuado. Oh! platónico amor de ninguém e de alguma, Espectro que criei e rodeei de lágrimas, Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma! Imagem, força de vontade, imagem Viva ou morta, não sei; imagem acre... mas Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!
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O cárcere profundo em que encontro... O forte muro a esta mágoa preso... A cicatriz deixada nos meus ombros... A luz extinta a segredar promessas... A chaga enorme que me abraça bem, confuso encantamento sem perdão... A corroída esperança que retenho quando levanto num suspiro as mãos... É destas marcas vivas que o meu ser tenaz e loucamente se alimenta... São estes os autênticos prazeres que as minhas horas sofrem violentas!
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Chamar Pássaros - Dora Ferreira da Silva
Chamar pássaros com o alpiste de amá-los. Eles pousam nos parapeitos. Nem sombra de medo nessa aproximação. Quase me sinto gémea do que são parados à beira da janela ou saltando no telhado recém-chegados. A cordialidade dos pássaros é subtil: afloram o coração de quem os ama.
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Flor sem haste - Carlos Queiroz
Menina pobre, eu venho agradecer-te Aquele sorriso bom que me inspiraste, Quando te vi na rua e julguei ver-te À flor dum rio, como flor sem haste. Balouçavas as mãos, como quem vai Numa estrídula marcha militar. E um laço nos cabelos, cai-não-cai, Fugia do compasso, a ralentar. Passavas pelas montras, como se Todas as coisas conhecesses bem; Ou, para alguma teres, pensasses que Bastaria pedi-la à tua mãe. Séria. – Somente em teu olhar brilhava Uma alegria de quem viu no céu A nuvem mais bonita que lá estava E o anjo que atrás dela se escondeu. O que os outros pensaram dos teus modos, Que importa? Nem teu nome ou tua idade. Eu venho agradecer-te por nós todos Essa lição de naturalidade. Que tu nos destes, ó fresca flor sem haste, À flor da rua, como á flor dum rio. - Menina pobre que por nós passaste, Que tanta gente olhou e ninguém viu.
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A noite descia como um cortinado sobre a erva fria do campo orvalhado. e eu (fauno em vertigem) a rondar em torno do teu corpo virgem, sonolento e morno, pensava no lasso tombar do desejo; em breve, o cansaço do último beijo... E no modo como sentir menos fácil o maduro pomo do teu corpo grácil: ou sem lhe tocar – de tanto o querer! – ficar a olhar, até o esquecer, ou como por entre reflexos do lago, roçar-lhe no ventre luarento afago; perpassando os meus nos teus lábios húmidos, meu peito nos teus brancos seios túmidos...
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Perto de cinquenta anos caminhando contigo, Poesia. A princípio me emaranhavas os pés e eu caía de bruços sobre a terra escura ou enterrava os olhos na poça para ver as estrelas. Mais tarde te apertaste a mim com os dois braços da amante e subiste pelo meu sangue como uma trepadeira. E logo te transformaste em taça. Maravilhoso foi ir derramando-te sem que te consumisses, ir entregando tua água inesgotável, ir vendo que uma gota caia sobre um coração queimado que de suas cinzas revivia. Mas ainda não me bastou. Andei tanto contigo que te perdi o respeito. Deixei de ver-te como náiade vaporosa, te pus a trabalhar de lavadeira, a vender pão nas padarias, a tecer com as simples tecedoras, a malhar ferros na metalurgia. E seguiste comigo andando pelo mundo, contudo já não eras a florida estátua de minha infância. Falavas agora com voz de ferro. Tuas mãos foram duras como pedras. Teu coração foi um abundante manancial de sinos, produziste pão a mãos cheias, me ajudaste a não cair de bruços, me deste companhia, não uma mulher, não um homem, mas milhares, milhões. Juntos, Poesia, fomos ao combate, à greve, ao desfile, aos portos, à mina e me ri quando saíste com a fronte tisnada de carvão ou coroada de serragem cheirosa das serrarias. Já não dormíamos nos caminhos. Esperavam-nos grupos de operários com camisas recém-lavadas e bandeiras rubras. E tu, Poesia, antes tão desventuradamente tímida, foste na frente e todos se acostumaram ao teu traje de estrela quotidiana, porque mesmo se algum relâmpago delatou tua família, cumpriste tua tarefa, teu passo entre os passos dos homens. Eu te pedi que fosses utilitária e útil, como metal ou farinha, disposta a ser arada, ferramenta, pão e vinho, disposta, Poesia, a lutar corpo-a-corpo e cair ensanguentada. E agora, Poesia, obrigado, esposa, irmã ou mãe ou noiva, obrigado, onda marinha, jasmim e bandeira, motor de música, longa pétala de ouro, campana submarina, celeiro inextinguível, obrigado terra de cada um de meus dias, vapor celeste e sangue de meus anos, porque me acompanhaste desde a mais diáfana altura até a simples mesa dos pobres, porque puseste em minha alma sabor ferruginoso e fogo frio, porque me levantaste até a altura insigne dos homens comuns, Poesia, porque contigo, enquanto me fui gastando, tu continuaste desabrochando tua frescura firme, teu ímpeto cristalino, como se o tempo que pouco a pouco me converte em terra fosse deixar correndo eternamente as águas de meu canto.
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A nuvem sobre a Página - António Ramos Rosa
Semelhante à imóvel transparência à inesgotável face à pedra larga onde o olhar repousa Água sombra e a figura azul quase um jardim por sob a sombra a iminência viva aérea de uma folhagem suspensa na folhagem Semelhante ao disperso ao ínfimo chama-se agora aqui o sono de erva a ligeireza livre a nuvem sobre a página
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Força te digo, a mim: sustenta o norte, ataca o centro e espera que a moura chame, que a lua cresça, que a tarde atarde as mãos coadas e o mundo seja areia onde se afoite a luz e nada se corrompa.
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Não me importo com as rimas - Alberto Caeiro
Não me importo com as rimas. Raras vezes Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor Mas com menos perfeição no seu modo de exprimir-se Porque me falta a simplicidade divina De ser todo só o meu exterior. Olho e comovo-me, Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento...
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Poema para habitar - Albano Martins
Poema para habitar A casa desabitada que nós somos pede que a venham habitar, que lhe abram as portas e as janelas e deixem passear o vento pelos corredores. Que lhe limpem os vidros da alma e ponham a flutuar as cortinas do sangue – até que uma aurora simples nos visite com o seu corpo de sol desgrenhado e quente. Até que uma flor de incêndio rompa o solo das lágrimas carbonizadas e férteis. Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.
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Teci durante a noite a teia astuciosa - Miguel Torga
Teci durante a noite a teia astuciosa Dum poema. Armei o laço ao sol que há-de nascer. Rede frágil de versos, É nela que o meu sono se futura Eterno e natural, Embalado na própria sepultura, Vens ou não vens agora, astro real, Doirar os fios desta baba impura?
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Poeta não é gente, é bicho raro Que de jaula ou gaiola se escapou E anda pelo mundo às cabriolas, Aprendidas no circo que inventou. Estende no chão a capa que o disfarça, Faz do peito tambor, e rufa, salta, É urso bailarino, mono sábio, Ave de bico torto e pernalta. Ao fim toca a charanga do poema, Todo feito de notas arranhadas, E porque bicho é, bicho ali fica, A uivar às estrelas desprezadas.
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Reza do Chacal na Praia do Namibe - Mayyahk ( Pseudónimo )
Sob o azul frio da rosa praia do esqueleto, nesse deserto sem regresso e sem começo, conhece a frágil foca cria o férreo preço da estranha sede do chacal de dorso preto. «Rego com o sangue da pequena foca triste as dunas onde planto os ossos de gaivota, e nesta horta a noite é dócil e derrota o vento vil que contra o sonho não resiste. Não chores, oh pequena foca triste, não chores. Dos ossos da gaivota nascerão caras de peixe, e dessas máscaras de mágoa, sete ribeiros quais teus olhos doce água.» Silêncio e noite no Namibe areal… um oásis grita no uivo do chacal.
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Casa de sol onde os animais pensam - António Ramos Rosa
Casa de sol onde os animais pensam erguida nos ares com raízes na terra ampla e pequena como um pagode com salas nuas e baixas camas casa de andorinhas e gatos nos sótãos grande nau navegando imóvel num mar de ócio e de nuvens brancas com antigos ditados e flores picantes com frescura de passado e pó de rebanhos ó casa de sonos e silêncios tão longos e de alegrias ruidosas e pães cheirosos ócasa onde se dorme para renascer ó casa onde a pobreza resplende de fartura onde a liberdade ri segura
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Com Palavras - Egito Gonçalves
Com palavras me ergo em cada dia! Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto e saio para a rua. Com palavras - inaudíveis - grito para rasgar os risos que nos cercam. Ah!, de palavras estamos todos cheios. Possuímos arquivos, sabemo-las de cor em quatro ou cinco línguas. Tomamo-las à noite em comprimidos para dormir o cansaço. As palavras embrulham-se na língua. As mais puras transformam-se, violáceas, roxas de silêncio. De que servem asfixiadas em saliva, prisioneiras? Possuímos, das palavras, as mais belas; as que seivam o amor, a liberdade... Engulo-as perguntando-me se um dia as poderei navegar; se alguma vez dilatarei o pulmão que as encerra. Atravessa-nos um rio de palavras: Com elas eu me deito, me levanto, e faltam-me palavras para contar...
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Aqui me tens, meu Deus, em confissão. Não roubei. Não matei. Não caluniei. Mas nem sempre segui a tua lei, nem sempre fui a irmã do meu irmão. Não recusei aos outros o meu pão. Amor, algumas vezes, recusei. Mas por tudo o que dei e o que não dei, eu te peço, meu Deus, o meu perdão. Perdão para os meus pecados conscientes e para os meus pecados inocentes, para o mal que já fiz e ainda fizer ... Perdão para esta culpa original, para este longo e complicado mal: o crime sem perdão de ser mulher.
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Um dia chegará a Primavera! - Maria Rosa Colaço
Um dia chegará a Primavera! Um dia em qualquer lugar, ou em todos os lugares, Como um novo maio, Haverá entendimento dos homens e dos deuses, O fluir fácil da vida e do trabalho, E harmonia entre o que se deseja e as mãos já constroem. Um dia seremos todos crianças maravilhadas. Um dia seremos inocentes, E nus.
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Não me digam que espere, eu quero já. Cedo era ontem, amanhã é tarde. Capitão de navios que já não há, não vou deixar que o tempo me deserde. Portanto, agora! Hoje é que eu sou no gume da navalha. Todo o minuto de outra hora é a margem-viagem que me falha. Já é que eu sou – e não me peçam nada para amanhã, que é tarde. Larguei todo o meu pano à madrugada, não vou deixar que o tempo me deserde.
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