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Daniel Camacho

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LISTA DE POETAS POR ORDEM ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME

Voz - Daniel Camacho

Quando ousas soltar a concavidade do teu sopro
e te inspiras na leve ternura de teu clamor,
desvendas secretos murmúrios privados da dor.
Quando o intimo aperto suplica pela tua voz
de soprano nocturno, de velhos hábitos que giram
em torno de um dos anéis de Saturno,
vulcanizas violetas sem corpo,
ofuscas as pautas, as notas situadas
duas oitavas abaixo do ritmo que escalas,
num fuso que acompanho quando sinto a eloquente
presença da tua aragem, como se sentisse a maresia
e as ondas que rebentam na areia, naquele intervalo
onde aparas os cristais que encobrem as manhãs
que esmorecem na palidez do ilustre silêncio
e que perduram sempre tão solitárias
até a alma se arrepiar numa ária
de ilimitáveis rasgos puros do pensamento.

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Salgadas como as ondas do mar - Daniel Camacho

Salgadas como as ondas do mar,
são cáusticas as tuas faces
feitas de magenta e purpurina,
são invulgares os recintos vazios
que suplicam por um sopro,
ou um arrepio, um rosto
que desate o semblante fechado
da rotina dos dias e das noites.
Salgados como as lágrimas,
são neutros os teus olhos
feitos de queixumes voláteis,
são estranhos os golpes ásperos
que batem na aguda trincheira,
cheia de corpos de madeira,
de copos de meia asa e conchas
de espadas ácidas e rasas.
A amargura das palavras
confia demasiado na tua mente,
salgada como os poros da pele,
quando suam por cansaço,
quando sugam o trabalho incolor
patente nos braços de alguém.
A doçura das palavras,
desconfia demasiado da tua mente,
doce como as tuas faces e os teus olhos
quando assimilam o sabor da dúvida,
quando transbordam nas suaves carruagens
do disfarce e da mentira.

 

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Vida - Daniel Camacho


A vida tem que ser vista com outros olhos, tem que ser apreciada com outros sentidos mais selvagens, menos certos, correctos, patéticos e rectilíneos.
Não existe só um Sol e uma Lua, não são 5 os Continentes, nem tão pouco 5 os Oceanos, os dias não têm 24 horas nem essas mesmas horas são constituídas por minutos e segundos. O ontem nunca existiu, o presente não existe, e o futuro nunca existirá, porque o tempo não é só abstracto, é também irreal e arrasta consigo até ao pântano dos dias a voz que não se solta, a chuva que não cai, jorra do chão como se fosse um vulcão invertido, o vento não se passeia, foge, apenas foge de um não sei o quê que o chateia veemente a toda a hora inexistente.
A música não se ouve, sente-se, as palavras não se escrevem, nem se lêem, sentem-se e sentam-se cansados num banco de um jardim abandonado, os inúteis pensamentos, os inúteis sentimentos e abraçam rijos os acordes que os passos traçam num chão de cimento.
As casas não abrigam ninguém, os carros não transportam ninguém, as janelas da cela mental, prendem-nos à terra que abastece tantos pecados fúteis, tantas perdas que demoram tanto tempo a serem ultrapassadas, mas sendo o tempo um fingimento porque raio estando suspensos os olhares fugidios, as lágrimas caiem irreflectidas num cemitério de gente que se arrasta solenemente pelas avenidas desertas e pelos semáforos que apertam os corpos e os hipnotizam pelos poros cheios de suor e de medo que transpiram sempre que passeiam e tentam passar discretos pelo quotidiano incorrecto?
A vida tem que ser encarada noutra perspectiva menos definida, não se podem buscar significados nos livros, nem nas mentes mentecaptas dos que se julgam sábios, a sapiência é virtual, temos que ir à procura lá fora para sentir o que significam todos esses códigos um dia inventados por todos aqueles homens que um dia se aperceberam que os dias não são dias, nem tão pouco são algo para contar, servem para se sentir e maltratar a rigidez da vida, para ultrapassar infinitas barreiras da gélida imaginação guardada num cubo de 7 lugares.

 

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Eu - Daniel Camacho


Eu não um guardador
de rebanhos,
não sou um livro de versos
por escrever
nem tão pouco
um misto de poeta
e de pessoa
que de vez em quando
desfia outro ser.
Sou simplesmente
um fingimento infligido
no fingido ser humano,
um engano escrito
pelas mãos de outros homens,
um improviso nunca dito
guardado na boca de outros
dias, de outros mundos
de onde nascem outros eus.

 

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Danças - Daniel Camacho


Ouves o silêncio desnudado no seu burburinho?

A intimidade cipreste do tempo Outonal
ganha forma e azeda as folhas ainda vivas,
as sombras fictícias e medrosas, furtivas
que derrubam fronteiras venenosas...

...de uma manhã pintada…

...num fio de água azul,
num rasgo que traça o desejo e o amansa,
um braço ancorado no vento louco que dança.

 

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Valquírias em Dó - Daniel Camacho

Despem-se valquírias numa valsa,
naufragam como piratas suas pétalas
tão próximas dos murmúrios
que em teu rosto se separam.
Ao largo do silêncio
batendo as asas de fogo,
derramam-se as águas e o tempo,
e tudo mais que balança à superfície
de uma dança encorajada por uma flor.
Sobre a poeira das sombras,
nasce um acorde tão transparente,
pintam-se as telas outrora indiferentes
com coisas sem nexo, cristais sem reverso,
valquírias que caiem suavemente embriagadas,
submersas em poetas sonhados num palco
de imensas cores, e disparates
docemente encostados entre as musas
que se compõem numa escala só,
menor, maior ou de sétima,
mas em perfeitas palavras esculpidas em Dó.

 

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Externa Pandora - Daniel Camacho

O teu reflexo
ficou lá fora,
irrequieto
a olhar para o espelho
cheio de escamas
que se inflamam e protestam,
derretem a cegueira irresponsável
num espectro inaparente, inimaginável.

O teu olhar
vi-o de fora,
estendeste-me o sinal
vermelho e as bandeiras
violentas de uma recusa,
com um fingido sorriso inocente.

O pensamento
brilha por fora
num entra e sai
que não demora
e sofre para além da lenda
urbana, da natureza
que se desleixa de forma
ufana, sem tristezas,
sem hesitações, mitos ou gritos.

O meus lábios
desesperam lá fora,
na sala estranha
cheia de tremuras
que enlouquecem
as células envenenadas
por teu falso amor.
Não fosses tu a amargura
que me retira as forças
e me contem com silencio
de mil texturas e eu
provavelmente ainda suspenso
nas folhas dobradas pelo vento,
soluçaria entre cravos de espanto,
lá fora, num morro sem pranto.

O medo,
dorme nas escadas
que escorrem por fora
das chagas do meu coração.

A triste melancolia
dos passos que me ultrapassam
num caminho de indecisões,
não chora, nem tão pouco se arrepende,
esconde-se por trás da porta,
do lado de fora, e finge que entende
todas as inúteis fronteiras
para as quais o homem pende.

Um cemitério milimetricamente arquitectado
para ficar de fora mas de frente para a plateia
que depende de um só estado que premeia
todo o insulto e indiferença, uma forca
de extremos que sai da boca de quem lemos,
vemos, adoramos e copiamos.

Malditos sejam os reflexos,
os olhares, os pensamentos,
os lábios sedentos, a melancolia maligna,
o medo que nos consome e assassina,
e as palavras que nunca nos deixam entrar
no mundo delas e abrigarmo-nos na Pandora
maldita que hoje e sempre nos deixa de fora!

 

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Declaração de Guerra - Daniel Camacho



Eu, Incoerdo Rafazedo, Rei da Terra Sagrada do Vácuo, Rei de coisa alguma que causa impacto, declaro guerra aos primórdios, aos primeiros acordes de sangue raivosos que correspondem às primeiras letras desenhadas a cores e ao estômago torcido e retorcido de dúvidas e dores.
A mesma guerra prometo à cumplicidade, à intimidade, ao segredo, à saudade e a todas essas coisas amargamente alheias.
Aos nomes transformados em esconderijos, às megalomanias roucas e a outros cobardes isolados – darei guerra!
E terão guerra minha as frases começadas por Ai e as frases acabadas Ui, as tristezas degeneradas em fraquezas e as lágrimas masturbadas, assim como a sempre fresca repetição de si próprio, a incontestável auto-aprovação e os ódios também muito dependentes do egocentrismo puro.
Guerra aos vermes da saudade da vida e ao desespero da ânsia afagadora do mar! E guerra ao arrependimento e às horas do medo do abandono!
Aos momentos estéreis e aos seus irmãos, os momentos furiosamente fúteis e úteis – GUERRA!!!
Também merecem a minha raiva, o meu ódio, as coisas e os bichos orgulhosamente semi-humanos, os silêncios desnecessários e os pedidos de desculpa – essa sub - espécie de palavras desnecessárias que tresandam em cada acto da vida.
Não descansarei enquanto não caírem as metáforas…cansadas…mortas…e assumidamente, demasiado usadas.
Declaro guerra ao espaço e ao infinito, por ser meu até o traço num bloco de lutas sem cansaço. E a memória, reflecte a guerra? Mandarei mil soldados apagar os registos guardados no disco mental e se isso não chegar, os canhões, os mísseis, os submarinos, navios, aviões, abaterão todos os esconderijos malditos que as palavras irritantemente guardam. Não sobreviverão os cúmplices do pensamento, os vírus colherão os anticorpos da sociedade infiltrada no vácuo.
Eu, Incoerdo Rafazedo, sou Rei da Terra Sagrada do Vácuo, como tal, declaro guerra a mim mesmo e ao Eu que desconheço.

 

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Musicalidades - Daniel Camacho



A princípio apenas a escuridão reinava, nem um ruído, nem uma só coisa, um só gesto patinava naquela praça vadia...
...depois a pouco e pouco as cores foram ganhando ânimo, vida, tomando formas desconhecidas...
...as sombras coloriam numa sucessão de movimentos controlados, o chão, castanho, madeira velha a chiar por dentro daquelas paredes desventradas...
...depois o tecto surgia sobre as nossas cabeças desprotegidas, num tom meio beije, meio sujo, incompatibilizado com as pautas surdas dos loucos, os outros abrigos que se fechavam e tombavam na atmosfera silenciosa ...
...as portas ganhavam forma e irremediavelmente abriam-se e fechavam-se como se tratasse de um piscar de olhos faminto, um desvio fictício na atenção da febre sonora, humildes sons que jorravam num lento labirinto experimental.
Nessa altura surgia uma música, uns salpicos, umas gotas entre gritos a rechear aquele momento suspenso no espaço, tipo Massive Attack ou outra coisa qualquer...
o céu cor de chumbo, dançava ao som gélido de Sigur Rós, enquanto as árvores de folhas caídas absorviam a essência de Knives out, cuspiam as notas de Björk como se de chuva tratasse. O bafo gélido caía ao chão sempre que sentia por perto os doces acordes de Lisa Ekdahl.

Nas ruas cheias de nada, onde o cansaço era patente a cada esquina, o ódio mergulhava clandestino, embriagado por um desamor raivoso e numa melancolia incontida ouvia Always in my heart (Bent) acariciando a face rude do desgosto...

...a noite aproximava-se a cada instante e a saudade batia cada vez mais forte no meu peito nu, sedento de calor e ousadas tentativas de romper os ideais deste mundo, a música de fundo aumentava com as labaredas da fogueira das verdades (Chan chan – Buena Vista Social Club), acordava-me para a fatídica realidade.

 

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Homenagem - Daniel Camacho


Eu sei que a vida continua, mas tudo à minha volta parece ter parado...

...sinto-me vazio por dentro, sinto-me nu.

Esta é a minha sentida homenagem à minha querida avó, esteja onde estiver, espero sinceramente que esteja bem, que tenha encontrado a calma, o descanso que nunca a perseguiu:

Noémia Clementina de Lemos
23 de Junho de 1915 - 29 de Outubro de 2002

Um último sopro solta-se
e parte sem norte,
em direcção a um novo desafio,
uma maré fugidia,
um dia que acordou
entre a vida e a morte,
entre a dor e a fantasia.
Desvendam-se de fio a pavio
todos os últimos retoques
desta pálida vida,
destes cansaços desumanos
que por vezes andam a reboque
e se encostam à nudez do silêncio
a pouco a pouco,
no vácuo obscuro do pensamento
absurdamente louco.
Nasce o vazio sem espanto,
cresce o murmúrio num só pranto,
ao redor, debaixo de um manto
que quase nunca se alcança,
tenta-se esconder a dor sem encanto,
o corpo, adormece já manso
num perpétuo descanso,
num infinito amanhã
renascido depois do sonho
medonho, que nos seca
o último respirar que ainda peca.
Desponta no olhar vazio,
uma mágoa, um arrepio,
um cansaço vagabundo,
que provoca ausências
neste doloroso mundo,
à medida que principio
na procura destemida
de um fio de água,
e avançam as margens do rio,
e avança o silêncio suspenso
num fragmento sem tempo.
Cheia de vontade,
cheia de brio,
desperta-se a saudade,
aviva-se a memória
de toda aquela gente
carregada de histórias para contar,
mas sem força suficiente
para desbravar um pedaço de mar,
um pedaço de terra,
um chão que ainda berre,
um horizonte que não erre,
e se deixe levar pelo vento,
num eterno adeus
que não se escuta,
numa imortal despedida
carregada de dor e emoção
e ilusão que já não luta.
Ainda oiço o silêncio
dentro de mim,
erguem-se as torres da revolta,
as tormentas originais
soltam-se,
desmembram-se,
esquecem-se do mundo
que foi feito para ter fim.

 

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Palco - Daniel Camacho

Aplausos
assaltam o palco
que mentalmente calco
por vezes descalço,
sem pontas desfiadas
nos nós de incertezas
que me tocam
e acercam o íntimo
recanto da alma,
que não sendo minha,
não é de ninguém.
Esfumam-se as figuras
cheias de pó, no vaivém
das marés que cobrem
ausências cobardes,
dependentes das palmas
estridentes e encantadas,
e das asas irreais que saram
as feridas dos homens,
e afastam as imagens
que sem traquejo, fraquejam
em qualquer lugar
onde o silêncio se assume,
agita o mundo e esconde-se
numa fogueira sem lume.

 

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Vigílias na noite - Daniel Camacho

Vigílias, traça doces caminhos
a noite, rasgando as pétalas das
buganvílias lilases. Livres mares
inquietos, ocultam o medo feroz,
mastigam o olhar pardacento, os sábios
sinais que sabem a tempo
transparente, cheio de vagos pensares
navegantes, despojados num riacho
eternizado num suspiro, entre pálidos acenos
de mulheres que adormecem nas estradas
feitas de feno. Leves pegadas, meros brinquedos,
meigos sentires, beijos amenos, vagos fluíres,
simples geadas que se apegam ao tempo que transpira
num papel. A noite assume-se, nem triste, nem só,
apenas afável, terna, bizarramente selvagem,
humana, suspensa no timbre eterno da vácua existência,
tal como um suspiro que cai docemente num túmulo
de imensas sombras. Corpos feitos de espanto,
não passam de meras flores que murcham nos pátios da vida.
E são muitas as figuras que se levantam toda a noite
para acompanharem a solidão vadia, são muitos
os gestos que se travam entre o cansaço e a sonolência
feita de tímidas fugas, desnudadas entre a demência.
Vigílias, a noite acompanha as horas idílicas,
entre um Inverno e outro, entre a chuva e o frio
que se sente num bafo de uma folha de algodão
que cai num rio sem tocar no chão. Regida pelo
vento maestro feito de sopros indigestos.

 

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Domingo - Daniel Camacho


Um domingo, uma tarde de domingo qualquer, a ultima vez que a vi. Hoje não sei em que dia parei, nem sei se é dia, se é noite ou outro estado de sobrevivência qualquer, nem sei se devo pensar ou se me devo afastar das questões e das ideias que me assaltam no escuro-claro que por vezes acontece, talvez seja melhor atar-me à cegueira que a vida cospe e deixar-me levar sem destino pelos oceanos de vários destinos.

Um domingo, uma tarde de Outono selvagem perdida no tempo. Continuo preso a esse momento que não passa, repete-se infinitamente no espaço e segue perfurando a minha consciência. Lembro-me que nesse fim de tarde, as folhas não caíam sós, as lágrimas perdiam-se clandestinamente no meu rosto, arfavam nas tuas mãos. Os candeeiros timidamente acendiam-se e tremiam, não de frio mas de dor, enrolados nas paredes da estação, tombavam com os adeus repetidos.

Um domingo, uma estação, um comboio que me roubou o respirar e uma vida que se esfumou por entre os carris atados ao chão. Um domingo? Talvez. Sei que nesse dia, encostei-me entre as árvores nuas, perdi a noção de tudo, até da saudade que julguei sentir. Bebi um café de solidão, caminhei nas estradas às curvas de bêbadas e deixei-me cair num vácuo de milhares de aparências nulas. Ouvi o arfar apressado das várias carruagens, escorreguei nas escadas da vida e deixei-me cair no porto dos navios imensamente carregados.

Um domingo de culto religioso, diria o outro vagabundo que se ajoelhava em frente aos altares das horas. Um dia e tantas dúvidas, tantos remendos que não voltam atrás mesmo que se queira. Hoje não sei em que dia parei, em que dia me deixaram parar, nem sei se é dia, se é noite ou outro estado de inconsciência qualquer! Estou preso à cama dos dias, adormeço gentilmente sossegado num canto do hospício. Deixo-me levar pelas ondas vivas que insistem em me acertar. Quero esquecer os domingos que me esconderam e te levaram. Um sábado qualquer talvez grite outra vez.

 

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Gaveta de Ilusões: - Daniel Camacho


Escravos, servos, criados
de um orgânico trabalho,
pedaços em que atalho
numa história sem dados,
sem lados estreitos
que avançam num mar
de milhares de leitos.
Somos um simples reparo
num aparo que atrapalho,
sempre que penso
no tempo suspenso
numa plataforma de vários
contratempos disformes,
vários compartimentos áridos
que se escondem
enquanto não vens e dormes.
Somos escravos do medo,
não imaginamos sequer,
qual será o caminho certo
para a verdadeira democracia
convergir em céu aberto,
sem romper os dias
que caiem entre gotículas
nos nossos inaptos dedos
cheios de feridas ridículas
que nos atropelam bem cedo,
bem na aurora da vida,
exposta numa gaveta

de pobres divisões,
que se abre e fecha
enquanto lá pões
a fantasia de um poeta
tresloucado por um seta
de imensas ilusões.

 

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Preparação do sono - Francisco Arcos


Se a Noite vier hoje ter contigo sem estrelas,

para encetarmos os três a grande viagem,

devemos procurá-las entre os lírios que adormecem ao crepúsculo

embalados pelo coro de balaustradas longínquas.



Nenhum de nós dirá que o que brilha nas pétalas é orvalho,

porque, para heresia,
.
já bastam a dor e a angústia do percurso a cumprir.

 

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Sonho em cama de aluguer - Francisco Arcos


Como se os corpos flagelados dos navios
fossem a minha própria carne,
aqui me tens exacto, real e nu,
apenas com um acto heróico averbado à margem da biografia:
« Salvou algures alguém de se afogar num espelho. »

Aqui me tens, adjacente ao teu corpo e ao tempo,
neste estaleiro antigo de lençóis de linho
onde o sonho e a angústia geram barcos
sob a vista do mar que se masturba.

.../

E afinal é só uma verdade que quero desfolhar
sobre o intrínseco da tua adolescência:
Aquela que esqueceu aos próprios deuses,
não obstante os nós mnemónicos que deram no pescoço dos seus cisnes.


Eis porque das profundezas de mim em ti ressurjo
a contemplar-te.

E exulto - exulto porque sinto
que é o infinito quem ouga nos teus olhos.

 

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Poema de amor - Francisco Arcos


Teu corpo é o mar onde mergulho a alma
até ficar escancarada à nossa volta
a noite de limites adiados.

E assim vou perfilhando em minha carne
os filhos que concebes dos navios.

 

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Nocturno - Francisco Arcos


O pescoço da noite é longilíneo
e os seus olhos vazados.


E por isso a desejo
e pactuarei com ela
na sombra crepuscular onde o verde das árvores falece
e a luz se putrefaz.

 

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Estória Trágico - Marítimo - Francisco Arcos


Mãos inesperadas resvalaram a estibordo.
Nunca se soube quem era o dono das mãos sem dono
que resvalaram tragicamente a estibordo da velha barca.

Elas caíram do mesmo jeito
com que no Outono caiem as folhas:

Ao longo da alma das árvores.

 

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Episódio de Guerra - Francisco Arcos


A chuva cai hoje às avessas
e não do silêncio para o grito.
Urge reinventar a barca
onde a covardia deserte e depois volte
para parir na pátria uma epopeia.
Urge fugir das lareiras apagadas
que só os olhos das velhas, envidraçados na morte,
mantêm crepitando
e que os úteros das noivas solitárias,
reservados para concepções adiadas,
transformam em brasidos escaldantes


Urge fugir para voltar, sagrado herói
e coroado de folhas de louro roubadas ao tempero dos assados,
e entrar na aldeia ao encontro de aortas esclerosadas,
por sobre passadeiras de flores murchas pela longa espera
e ao som marcial de rufos que viúvas cadenciam
batendo com as mãos nos ventres inchados das crianças famintas.

Cai hoje a chuva às avessas e ninguém dá por isso.

Nenhuma fraude, porém, resiste à angústia do poeta
quando pensa os seus poemas de cabeça para baixo
– mercenário jogral, a estoirar de sede,
fazendo o pino na praça,
não para que os outros riam como riem
mas para ele próprio sentir no rosto a alegria da chuva.

 

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Cínica é a Lua - Francisco Arcos


Caiu de bruços a noite
e não há quem a levante.

Que é do bom samaritano
que à sua beira se afoite,
que pare por um instante,
a leve no seu garrano,
lhe cure as chagas por gosto?

A lua como um faz-tudo,
com alvaiade no rosto
e um olhar de surdo-mudo,
passa de lado, o estafermo,
e deixa a noite ferida,
prostrada ali naquele ermo,
numa solidão completa,
esvaindo-se-lhe a vida
em forma de sangue e pus,
morrendo como um poeta
no mais cruel contraluz.

 

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Sábado Lírico - Francisco Arcos


Broca-se, martela-se, assobia-se,
na casa do vizinho, coerentemente vivo,
neste sábado à tarde em que a mim, insolitamente morto,
me ocorrem versos
e lá fora o sol insufla vida à substância inventada.

Não ponho em dúvida a utilidade das brocas e martelos
e muito menos se a cotejo com a dos meus poemas,
embora estes ( como cópulas requintadamente preparadas sob o sol
e depois conseguidas à sombra de claustros solitários )
nos deixem saciados - a mim, apenas corpo, e à minha alma, inteira.

O assobiar, porém, é pôr inutilmente os lábios
ao serviço duma técnica insidiosa
que serve apenas para iludir tristezas sem remédio
e espantar, por instantes, os pássaros carnívoros,

.../

escondidos na sinistra e silenciosa árvore da vida,
que vêem, de surpresa e com asas abusivas,
debicar-nos o ser sem dó nem piedade.

Ah ! Como desejo o silêncio que levanta voo
do sonho pendular do relógio de sala
e pousa nesta mão esquerda que se crispa na cabeça como quem
desesperadamente tenta preservar dos malefícios do sentir
o que de real, mas transitório,
a mão direita obedientemente escreve.

 

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Inesperadamente, num Domingo - Francisco Arcos


Perfilhados do Sol, no cais deserto,

com o gesto dos guinchos modelado nas almas

( antigamente, lembras-te ? ):



As tuas mãos tinham marcado encontro em minha nuca

( as minhas percorriam-te o corpo desejado,

como quem do fruto apenas colhe a imagem ),

quando, com a nossa subtil cumplicidade,

o Domingo inundou a doca seca

e pôs a flutuar no tempo a memória dos navios.

 

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Mesa libertada - Francisco Arcos


Heróica mesa antiga, ergue-te enfim!

Transponhamos o pórtico do espelho temporal que nos separa:


Sei agora que se um dia deitaste as mãos ao chão

foi para que alguém escrevesse este poema no teu dorso.

 

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Retrocesso - Francisco Arcos


Oiço crianças brincar à minha porta,

que está fechada à chave,
.
e só porque ali brincam, minha porta

é o mais recôndito recesso do Universo.



Poeta fragmentário,

capcioso cronista de interregnos,

sinto este instante doer-me, engrinaldado

com sapatilhas de dança e braços nus

de gestos congelados na memória,

ante os meninos que brincam - já não anjos,

mas simplesmente flores inamovíveis

onde a beleza espera a telúrica mensagem dos insectos.

 

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Inanição vigiada - Francisco Arcos


Em busca do humo
com que a alma se nutre,
dedos são raízes
imersas no espaço
que apenas presumo.


E paira um abutre
de asas infelizes
por sobre o terraço
para onde me arrumo.

 

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Sala de concerto - Francisco Arcos


Agora que a chuva penteia os seus longos cabelos musicais

e o instante soçobra entre a vidraça e a viagem,

o piano anódino é um animal golpeado

preso a qualquer coisa distante

pelo cadeado ferrugento de eu o estar ouvindo.



Se uma nave, porém. viesse fundear

na solidão submersa desta sala,

despida de bandeiras e com as velas amainadas no passado,

sem dúvida traria o corpo tragicamente enxuto

mas decerto feliz por vir oferecê-lo às minhas ondas.

 

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Disfarce erótico - Francisco Arcos


Sempre que surges é como se emergisses do mar,

húmida e lenta,

descalça e nua de água, com as mãos

- ofegantes medusas de acenar a estrelas -

de repente borboletas nocturnas de aflição

no rosto dum sol inesperado.

Por isso, todas as coisas, que assistem à tua madrugada,

deixam de o ser e são somente o espaço onde tu ficas sendo.

E assim de um beijo cósmico resulta

renasceres, gloriosa e adulta,

qual Afrodite espacial,

indissoluvelmente divorciada desse Zeus antigo e metamórfico,

feito salsugem a orvalhar-te o sexo,

feito gaivota a delinear-te os ombros.

 

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Impasse - Francisco Arcos


Como é difícil inventar um mar
e tão fácil morrer a pensar nele!


E tudo porque num mar inventado
sobram os barcos
e faltam os peixes.

 

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Libelo - Francisco Arcos


A autópsia feita ao mata-borrão

é concludente:

Houve envenenamento.
.

E tudo cruelmente premeditado:

O poeta sabia

do poder tenebroso do seu sangue

quando cortou os pulsos para escrever o último poema.



É justo que o condenem à morte em processo sumário.

 

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Gramática das coisas - Francisco Arcos


Ele tinha tentado em vão participar
.
na animada conversa dos objectos que o rodeavam no quarto.


Não podendo expulsá-lo,

porque só através dele existiam nesse instante,

calaram-se todos de repente

reduzindo-o à angustiante condição de intruso.


E, quando a criada lhe veio trazer o almoço à cama,

puxou-a para si, com desespero e raiva,
.
e fizeram amor ocasional,

enquanto os objectos retomavam, indiferentes, a conversa,

naquela sua linguagem peculiar

que tem por sintaxe o tempo,

a geometria por fonética

e a álgebra por morfologia.

 

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Ritual Fúnebre - Francisco Arcos


Quando o silêncio apodrece nas entranhas das coisas

e se torna urgente embalsamá-las no devir

ou inumá-las na memória,

não me faltes, mulher, com o barco do teu corpo

a baloiçar-se no mar do nosso desejo selvagem.


A conjugação dos sexos

( precedida das raivas ancestrais,

acolitada pala alegria da posse plena

e coroada pela quotidiana, infinita e serena tristeza )

será o único epílogo possível desse drama de autor desconhecido.


Não me faltes, pois, nesses momentos decisivos

para que a glória seja nossa uma vez mais

e da morte o proveito como sempre.

 

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Ouvindo Mahler - Francisco Arcos


Enquanto mastigo sanduíches de mármore

degolo girassóis ao meio-dia.


E a noite vem descendo antecipadamente.


Cada pedúnculo acéfalo

é a matriz duma nova nebulosa,



Agrilhoado a Mahler,

sentimo-nos os dois tão livres quanto lúcidos,

embora eu esteja vivo e ele morto.

 

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Mostrador num posto de turismo - Francisco Arcos


Barros das Caldas,

barros de Barcelos,

barros onde o vermelho das glandes e das cristas

já não é sangue activado por hormonas,

mas tinta de zarcão plastificada.


 

Virilidade de um povo

feita souvenir para turistas loiros.

 

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Falo contigo Goya - Francisco Arcos


Depois de contemplar tua mulher,

nua e vestida,

como um dia a pintaste,

só quero agradecer-te o universo que me deste,

intacto,

entre uma pose e a outra.

 

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Amor Vegetal - Francisco Arcos


Nua e em flor,

o corpo reclinaste sobre a relva.


Tuas coxas desabrocharam como pétalas

no ângulo exacto para a dádiva,

deixando o gineceu a céu aberto.



E com meu único estame te fecundo

sem a cumplicidade do vento ou dos insectos.

 

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Inopinado cão vadio - Francisco Arcos


Hoje o dia deitou-se como um cão à minha beira

e ninguém deu por isso senão quando,

ao erguer-me do sonho, lhe pisei a cauda,

comunicante e alegre,

e o ouvi ganir do lado de lá dos meus olhos

contingentes.


E nem biscoitos nos bolsos da memória,

nem pedras escondidas dentro da alma!

 

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Elegia para um insubmisso - Francisco Arcos


As balas que te mataram

já não são deles, mas nossas.



Pertencem-nos, agora,

e permanecem reactivadas,

funcionais e disponíveis,

no teu corpo guardado

( incorruptível )

na memória dos genes.


Sabemo-lo e esperamos.


Podes, portanto, apodrecer em paz.

 

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Movimento perpétuo - Francisco Arcos



Pensamos a partir do postulado

de que tudo no mundo é relativo,

quando é certo que em tudo o que medimos

é a nossa própria dimensão que achamos.


Em cada óbito o Cosmos morre inteiro

e inteiro vai ressuscitar no óvulo

que, fecundado, vinga.

 

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Prece dum Náufrago - Francisco Arcos


Manhã, não faças o meu ócio trágico.

 

Guarda as carícias dos teus dedos

para a tristeza dos barcos submersos.


Contemporâneo de Deus, respiro ainda.

 

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Cantilena para Hermes adormecer - Francisco Arcos


Tempo imanente:
Nem conteúdo,
nem continente,
fora de tudo,
dentro de nada,
é um nó pendente
num vão de escada.



Sem continente,
nem conteúdo,
fora de tudo,
dentro de nada,
( nu, transcendente
e adormecido )
oscila Hermes
num vão de escada,
bem escondido
da passarada
que come vermes.

 

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Auto - retrato instantâneo - Francisco Arcos


O poeta sentiu, de súbito e inadiavelmente,

no mais profundo âmago do ser,

toda a ânsia e a angústia dos medos ancestrais

vividos pela espécie.


Agachou-se entre o milho

e, sem que o suspeitasse,

deixou na seara verde,

povoada de corvos e de gralhas,

a síntese há muito procurada.

 

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Poema imoral- Francisco Arcos



Dispo o casaco, rasgado por facadas inócuas e antigas,

e cubro, sem saber porquê, o corpo nu da suicida

que me fica espreitando agradecido

pelos exíguos buracos dos rasgões.


Porém - aqui o juro -

recuperarei sem remorso o meu casaco

se, por demora do médico legista,

tardem demais em levantar o corpo.


Que arranjem um lençol em qualquer lado!

O frio é de rachar

e a moral com que tantos se agasalham

já não me aquece senão do sexo para baixo.

 

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Espéctulo para adultos - Francisco Arcos



Nisto que brota e flui hão de cair e vogar,

em tardes ainda longínquas,

as proteladas folhas outoniças de todas estas árvores familiares.


Os pássaros virão humedecer aqui seus voos e gorjeios -

- e isso não será porque queiram então dessedentar-se,

mas por optarem livremente por um céu atípico.

Nisto que brota e flui hão-de banhar-se adolescentes

de repente acordadas para o amor

( e como sempre espiadas das margens pelas coisas

disfarçadas de nomes-aparências que nunca sobressaltam a nudez ).

..../

E à noite um céu barroco,

poderosamente debruçado sobre mim

e sobre eventuais flores, sempre possíveis,

brilhará, com o dobro dos seus astros,

nos olhos fascinados de um menino qualquer

obrigado a ir cedo para a cama.

 

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História Trágico - Natalícia - Francisco Arcos


Agita-se a criança,
presa à mãe que ainda geme,
e logo alguém avança
ostentando na bata,
bordado a negro, um eme.

Traz na mão a tesoura
( que é de aço e não de prata )

Nem um foguete estoura,
não há solta de pombos,
nem multidão, nem bombos,
nem cantos, nem fanfarras.

Apenas a manhã,
predadora e pagã,
exercitando as garras,
paira ao longe e crocita.

E, cortado qual fita
num acto inaugural,
sucumbe no passado
um triste e ensanguentado
cordão umbilical.

 

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Panorama usurpado - Francisco Arcos


Com o casarão da Alfândega atracado mesmo em frente,

que miras hoje tu, ó Miragaia ?


Saudosa da placenta,

desnudas-te e depois de expores nos varandins,

como pendões de guerra, as roupas íntimas,

atónita contemplas no teu corpo,

tatuado de siglas e slogans,

o umbigo feito pátria.

 

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Epitáfio para uma vala comum - Francisco Arcos


Um brado de âncora caindo ( mas na alma );

a tarde antecipada dos dias que hão-de amanhecer depois:


Assim um dia em nós fundeará o tempo,

absurdamente acostado ao cais do nosso corpo.

 

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O cerco do sol - Francisco Arcos


Envolvido pela película do tempo há muito me debato
( e jamais me liberto )
dessa húmida mucosa que me tolhe a hipótese de ser alguma coisa mais
que um mero extracto
de um Cosmos embrionário, eternamente inacabado e nunca longe nem perto
da dimensão exacta dos infinitos espaços siderais.

O cerco é prolongado e essa demora
devo-a afinal à minha própria ânsia
que à medida que o Sol se autodevora
lhe restaura com versos a substância.

 

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Quadro desalinhado na parede do fundo - Francisco Arcos



Dei conta disso quando, alheado do que ela me dizia ao ouvido,
por cima do seu ombro passeei os olhos pelo quarto de aluguer.

Depois, envergonhado e já arrependido
por ter que abandonar essa mulher
( que talvez me houvesse segredado que me quer e ama ),
deixei-a sentada aos pés da cama
e regressei ao mundo;
mas, antes de sair, com um rápido e hábil gesto controlado,
deixei também o quadro na parede ao fundo
perfeitamente alinhado.

 

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Transfusão - Francisco Arcos



O líquido, que embebe o poema, transfundi-o,
para que a fome de sol jamais o deixe,
de um mítico animal de sangue frio,
nem réptil nem peixe ,
que nada bem no fundo, junto ao lodo,
do caudaloso rio
que é parte do meu todo.

E nem o silêncio estelar embarga a clandestina viagem,
que a poesia assume
através de um universo onde há astros esfomeados de lume
e gravidades que não interagem.

 

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O triunfo de certa sede - Francisco Arcos


Pelos interstícios do tempo ( feita luz ) se escoa
a eternidade que o Cosmos configura

Para o poeta essa escorrência é fétida e letal;
mas bebe-a à toa,
porque a secura
é ainda o pior mal
de entre tudo o que no íntimo o magoa.


Uma estranha compulsão de maré viva de Agosto
antecipadamente celebra um falso solstício,
em honra do sol-posto;
enquanto, à pressa, um infinito silêncio calafeta o último interstício.

 

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Caçador de acordes - Francisco Arcos


Unta com visco um pentagrama e aguarda,
escondido no meio das estrelas, que lá poise ou algum deus coloque
um acorde perfeito ( ou dissonante ), que possas pendurar como um berloque
numa das muitas jóias, que há por lá em barda;
se o fizeres com o máximo rigor
poderás ser um músico de jazz – seja lá isso o que for.

 

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Subitamente , Van Gogh - Francisco Arcos


Entre a luz e o rosto,
a aba larga do chapéu de palha
deixa na sombra aflito o olhar há muito posto
nos confins da paisagem, onde a cor encalha.

Depois é só torcer o céu,
como quem torce roupa, e manter lá suspensa, a crocitar, a gralha
que transforma a seara em corpo de mulher abandonado ao léu.

 

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Um nó no lenço - Francisco Arcos


Amortalhadas, cada uma em seu próprio nome,
jazem algures em mim as coisas – tudo, afinal,
o que com meus nervos tentaculares abranjo e caço
para enganar a fome
essencial
que sem remédio passo.

( É a preciosa escória
do meu ser. )

Daí o nó que há muito dei no lenço da memória,
para me lembrar disso ao falecer.

 

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Poema excêntrico - Francisco Arcos


Nas espirais das galáxias e na das conchas
dos univalves, me deslumbro e viajo,
de asas tronchas
e nu de qualquer trajo,
tragicamente centrífugo e solar.

E só irei parar
quando estiver bem dentro
do único ponto da tangente
que me garanta atingir directamente
o anticentro.

 

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Olhar vidrado - Francisco Arcos


Na imensa falésia
do tempo por medir
nem uma única angra
se abre ao mar desta atávica amnésia
que me abandona entre o zénite e o nadir
- feito coisa que sangra – ,
transformando os poemas em insaciáveis sedes
e a retina do poeta na mais cega das paredes.

 

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Breve convívio com insectos inesperados - Francisco Arcos


Nas hastes destes juncos, onde o estio arde,
prolonga-se a agonia das libélulas
que desovam, de asas abertas, inteiramente dadas à luxúria da tarde.


Daí a força que meu ser domina
desde o núcleo das células,
onde a semente do tempo se lá cai germina,
até à flor da pele, que a si mesma se inventa,
perante um infinito que só existe à custa
do que a nossa natureza lhe acrescenta.

À tona do paul a própria luz se manifesta e barafusta
contra o anonimato assumido pelas coisas.

E tu, que a voar a tudo isto assistes,
porque não deixas o poema inacabado e finalmente poisas
num destes juncos tristes ?

 

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Beco do Fala - Só - Francisco Arcos


Desprezo o poeta - sândalo
que se infiltra na gente por esconsa porta
para fazer de nós comparsas desse escândalo
que é perfumar a lâmina que o corta.

 

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Em plena orla marítima do tempo - Francisco Arcos


Demorarmos o olhar
na contemplação exaustiva do que vemos,
é um meio de podermos abarcar
tudo o que existe no intervalo dos extremos
dentro dos quais o ser das coisas é.


Dessa demora, porém, advirá o atraso
que há-de vitimar-nos depois, quando a maré
subitamente subir, deixarmos de ter pé,
e o tempo vier afogar-nos como se tudo se desse por acaso.

 

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Quando os gelos querem ser cauda de cometa - Francisco Arcos


Comemoremos com sangue e júbilo esse dia
em que fomos expulsos
de um ventre onde, inventando o prazer, o sol procria
por interposto ser;
e nos deixa depois deambulando, avulsos
e de asas atrofiadas, através
da maior dimensão que o cosmos possa ter.


Comigo, foi como se caísse,
com toda a poesia do mundo atada aos pés,
de um colo maternal, todo meiguice,
para o mais gelado e inabitável fiorde
da minha mente,
onde o sonho se gera, cria e sente,
sem que o silêncio das estrelas nos acorde.

 

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Exercícios para poemas de percussão - Francisco Arcos



1-




Pensar a Poesia é como estrangulá-la

para cobardemente a violar depois:



Poetas, por quem sois,

desisti do mistério e da cabala

e renunciai, por uma vez, às soluções extremas

de improvisar asas em cavalos

e, ao mesmo tempo, inventar gargalos

que dificultam o jorro natural dos poemas.

 

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Um mero caso de drenagem defeituosa - Francisco Arcos


Antes que os bueiros da alma, para onde escorrem os poemas,

se entupam para sempre com os fragmentos de silêncio e de outros lixos,

que a enxurrada do tempo para lá transporta,

deixemos livremente fluir nossas canções mais intimas e blasfemas

pelo corpo da feminina noite sideral, desde os seios e coxas às goelas dos bichos,

que à sua sombra procriam à pressa atrás de qualquer porta.



Inundado de angústia e amordaçado em sua condição de autoproscrito,

um poeta é a única Coisa que mantém intacto o Infinito.

 

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Restos de um festim erótico - Francisco Arcos


Com os nós dos dedos fui bater-te à porta,
mas quem a abriu não foste tu,
porque já estavas morta,
afogada dentro do teu próprio nu
e abandonada no átrio duma cópula interrompida
por uma inesperada erupção solar ).


Invertido o sentido da espiral cósmica expandida,
o que nos resta senão deixarmo-nos ficar
em plena turba
a dissolvermo-nos nela como num mar
que narcisicamente se masturba ?


( É a memória, quase extinta,
quem se debate, como se fora um peixe,
por entre as malhas deste poema - até que eu deixe
e o teu invólucro pessoal e intransmissível o consinta …)

 

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Poema breve na enfermaria da longa insónia - Francisco Arcos


A enfermeira usa nas mãos luvas de borracha;

eu, um preservativo no sitio certo.



Descubro que todos os meus poemas

são ignóbeis tentativas de violação da alma,

que devem constar no registo criminal

do meu cadastro poético.



Levem-me a juízo, quanto antes.



( POEMA FEITO A OLHAR PARA UMA PINTURA SURREALISTA ALHEIA )

 

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Resíduo Hospitalar - Francisco Arcos


E nem o fogo de todas as estrelas do Universo
conseguiria cremar
este imortal e tóxico resíduo
que jaz, a céu aberto,
no espaço verde do condomínio fechado
que um poeta ecologista construíu e compartilha com seus pares:

A última perna amputada do seu sofá predilecto.

 

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Poema do caminho de ferro - Francisco Arcos


Deiscente como nunca,
viajo para lá da janela embaciada da carruagem,
tentando polinizar a paisagem mental
que a boca escancarada do Cosmos fila e trunca.

Secreta vagem
de deiscência longitudinal
é o teu sexo,
onde a poesia desnudada guarda
a chave do seu nexo.

Canções inúteis, há-as em barda
em qualquer hemorragia verbal, jamais enxuta,
por onde a vida se esvai, assim como a distância
se esvai ( permanecendo ) nas paralelas dos carris de ferro;.

mas poesia – a autêntica - apenas plenamente se executa,
quando tuas coxas de mulher estão em consonância
com os quadris do meu corpo e em ti, enfim, me encerro.

 

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Quarteto de sopro - Francisco Arcos


1 . Brevíssimo solo do clarinete



Farejo ávido o tapete
que os teus pés descalços e nocturnos vão tecendo enquanto vais
ao encontro da mais longínqua das estrelas ( escondida
no insondável interior do clarinete).

As nódoas que farejo, não são sinais
que augurem vida,
mas presságios de morte – manchas residuais das hemoptises
de um sol a agonizar no último dos seus poentes.


Ao dedilhar as chaves meus dedos são raízes
que se recusam a nutrir sóis decadentes.

 

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