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LISTA DE POETAS POR ORDEM
ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME
Noite. Fundura. A treva É mais doce talvez... E uma ânsia de nudez Sacode os filhos de Eva. Não a nudez apenas Dos corpos sofredores Mas a das almas plenas De indecisos amores. A voz do sangue grita E a das almas responde! Labareda infinita Que nas sombras se esconde. Mas quase sem ruído, Na carne ao abandono O hálito do sono Desce como um vestido...
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O Bailador de Fandango - Pedro Homem de Melo
Sua canção fora a Gota. Sua dança fora o Vira. Chamavam-lhe "o fandangueiro". Mas seu nome verdadeiro Quando bailava, bailava... Não era nome de cravo Nem era nome de rosa; Era o de flor, misteriosa, Que se esfolhava, esfolhava... E havia um cristal na vista E havia um cristal no ar Quando aquele fandanguista Se demorava a bailar! E havia um cristal no vento E havia um cristal no mar. E havia no pensamento Uma flor por esfolhar... Fandangueiro! Fandangueiro? (Nem sei que nome lhe dar...) Tinha seus braços erguidos Não sei que ignotos sentidos... - Jeitos de asa pelo ar... Quando bailava, bailava, Não era folha de cravo Nem era folha de rosa. Era uma flor, misteriosa, Que se esfolhava, esfolhava... Que se esfolhava, esfolhava... Domingos Enes Pereira, Do lugar de Montedor, (O bailador de Fandango Era aquele bailador!) Vinham moças de Areosa Para com ele bailar... E vinham moças de Afife Para com ele bailar. Então as sombras dos corpos, Como chamas traiçoeiras, Entrelaçavam-se e a dança Cobria o chão de fogueiras... E as sombras formavam sebe... O movimento as florira... O sonho, a noite, o desejo... Ai! belezas da mentira! E as sombras entrelaçavam-se... Os corpos, ninguém sabia Se eram corpos, se eram sombras, Se era o amor que se escondia...
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Povo que Lavas no Rio - Pedro Homem de Melo
Povo que lavas no rio Que vais às feiras e à tenda Que talhas com teu machado As tábuas do meu caixão, Há-de haver quem te defenda, Quem turve o teu ar sadio, Quem compre o teu chão sagrado, Mas a tua vida não! Meu cravo branco na orelha! Minha camélia vermelha! Meu verde manjericão! Ó natureza vadia! Vejo uma fotografia... Mas a tua vida, não! Fui ter à mesa redonda, Beber em malga que esconda Um beijo, de mão em mão... Água pura, fruto agreste, Fora o vinho que me deste, Mas a tua vida não! Procissões de praia e monte, Areais, píncaros, passos Atrás dos quais os meus vão! Que é dos cântaros da fonte? Guardo o jeito desses braços... Mas a tua vida, não! Aromas de urze e de lama! Dormi com eles na cama... Tive a mesma condição. Bruxas e lobas, estrelas! Tive o dom de conhecê-las... Mas a tua vida, não! Subi às frias montanhas, Pelas veredas estranhas Onde os meus olhos estão. Rasguei certo corpo ao meio... Vi certa curva em teu seios... Mas a tua vida, não! Só tu! Só tu és verdade! Quando o remorso me invade E me leva à confissão... Povo! Povo! eu te pertenço. Deste-me alturas de incenso. Mas a tua vida, não! Povo que lavas no rio, Que vais às feiras e à tenda, Que talhas com teu machado, As tábuas do meu caixão, Pode haver quem te defenda, Quem turve o teu ar sadio, Quem compre o teu chão sagrada, Mas a tua vida, não!
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O Sol liquefaz-se, é rio; A sua luz, água ao vento; Sobre o mar turvo, cinzento, Tem qualquer coisa de frio. Chamam-lhe Deus os pagãos. Depois, o Sol, quando passa Solta os cabelos, com graça, Deixa-nos oiro nas mãos...
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Tempestade - Pedro Homem de Melo
Faz mar na ria Formaram-se ondas Que ventania Torna redondas. Correm na ria Ondas aos centos. Cavalaria De água e ventos!
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Os Poetas - Pedro Homem de Melo
Nunca os vistes Sentados nos cafés que há na cidade, Um livro aberto sobre a mesa e tristes, Incógnitos, sem oiro e sem idade? Com magros dedos, coroando a fronte, Sugerem o nostálgico sentido De quem rasgasse um pouco de horizonte Proibido... Fingem de reis da Terra e do Oceano (E filhos são legítimos do vício!) Tudo o que neles nos pareça humano É fogo de artificio. Por vezes, fecham-lhes as portas - Ódio que a nada se resume - Voltam, depois, a horas mortas, Sem um queixume. E mostram sempre novos laivos De poesia em seu olhar... Adolescentes! Afastai-vos Quando algum deles vos fitar!
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Meu amor diz-me o teu nome - Nome que desaprendi... Diz-me apenas o teu nome. Nada mais quero de ti. Diz-me apenas se em teus olhos Minhas lágrimas não vi, Se era noite nos teus olhos, Só porque passei por ti! Depois, calaram-se os versos - Versos que desaprendi... E nasceram outros versos Que me afastaram de ti. Meu amor, diz-me o teu nome. Alumia o meu ouvido. Diz-me apenas o teu nome, Antes que eu rasgue estes versos, Como quem rasga um vestido!
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Dedos, Pés, Mãos Não podem ser mentira. - Porque o teu corpo É harpa que respira...
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Puxando um avarento de um pataco para pagar a tampa de um buraco que tinha já nas abas do casaco, levanta os olhos, vê o céu opaco, revira-os fulo e dá com um macaco defronte, numa loja de tabaco, que lhe fazia muito mal ao caco! Diz ele então na força da paixão: - Há casaco melhor que aquela pele? Trocava o meu casaco por aquele... e até a mim... por ele. Tinha razão quanto a mim. Quem não tem coração, quem não tem alma de satisfazer as niquices da civilização homem não deve ser: seja saguim, que escusa tanga, escusa langotim. Vá para os matos; já não sofre tratos a calçar as botas, a comprar sapatos. Viva nas tocas como os nossos ratos e coma cocos, que são mais baratos!
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Estrela que me nasceste quando a vista mal te alcança nessa abóbada celeste, onde a nossa alma descansa a sua última esperança... Estrela que me nasceste quando a vista mal te alcança! Antes nascesses mais cedo, estrela da madrugada, e não já noite cerrada... Que até no céu mete medo ver essa estrela isolada... Antes nascesses mais cedo. estrela da madrugada!
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Quando a minha alma estende o olhar ansioso por esse mundo a que inda não pertenço, das vagas ondas desse mar imenso destaca-se-me um vulto mais formoso. É minha santa mãe, berço mimoso donde na minha infância andei suspenso; é minha santa mãe, que vejo, e penso verei sempre, se Deus é piedoso. Como línguas de fogo que se atraem, avidamente os braços despedimos um para o outro, mas os braços caem... porque é então que olhamos e medimos a imensa distância donde saem os ais da saudade que sentimos!
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Foi-se-me pouco a pouco amortecendo, a luz que nesta vida me guiava, olhos fitos na qual até contava ir os degraus do túmulo descendo. Em se ela anuviando, em a não vendo, já se me a luz de tudo anuviava, despontava ela apenas, despontava logo em minha alma a luz que ia perdendo. Alma gémea da minha, e ingénua e pura como os anjos do céu (se o não sonharam...), quis mostrar-me que o bem bem pouco dura. Não sei se me voou, se ma levaram. Nem saiba eu nunca a minha desventura contar aos que inda em vida não choraram.
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Com que então caiu na asneira De fazer na quinta-feira Vinte e seis anos! Que tolo! Ainda se os desfizesse... Mas fazê-los não parece De quem tem muito miolo! Não sei quem foi que me disse Que fez a mesma tolice Aqui o ano passado... Agora o que vem, aposto, Como lhe tomou o gosto, Que faz o mesmo? Coitado! Não faça tal: porque os anos Que nos trazem? Desenganos Que fazem a gente velho: Faça outra coisa: que em suma Não fazer coisa nenhuma, Também lhe não aconselho. Mas anos, não caia nessa! Olhe que a gente começa Às vezes por brincadeira, Mas depois se se habitua, Já não tem vontade sua, E fá-los queira ou não queira!
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Seria o beijo Que te pedi, Dize, a razão (outra não vejo) Por que perdi Tanta afeição? Fiz mal, confesso; Mas esse excesso, Se o cometi, Foi por paixão, Sim, por amor De quem?... de ti! Tu pensas, flor Que a mulher basta Que seja casta, Unicamente? Não basta tal: Cumpre ser boa, Ser indulgente. Fiz-te algum mal? Pois bem: perdoa! É tão suave Ao coração Mesmo o perdão De ofensa grave! Se o alcançasse, Se o conseguisse, Quisera então Beijar-te a mão, Beijar-te a face... Beijar? que disse! (Que indiscrição...) Perdão! perdão!
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A Cigarra e a Formiga - João de Deus
Como a cigarra o seu gosto É levar a temporada De Junho, Julho e Agosto Numa cantiga pegada, De Inverno também se come, E então rapa frio e fome! Um Inverno a infeliz Chega-se à formiga e diz: - Venho pedir-lhe o favor De me emprestar mantimento, Matar-me a necessidade; Que em chegando a novidade, Até faço um juramento, Pago-lhe seja o que for. Mas pergunta-lhe a formiga: "Pois que fez durante o Estio?" - Eu, cantar ao desafio. "Ah cantar? Pois, minha amiga, Quem leva o Estio a cantar, Leva o Inverno a dançar!"
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Estava uma lavadeira a lavar numa ribeira Quando chega um caçador: - Boas tardes, lavadeira! - Boas tardes, caçador! - Sumiu-se a perdigueira Ali naquela ladeira; Não me fazeis o favor De me dizer se a brejeira Passou aqui a ribeira? - Olhai que, dessa maneira, Até um dia, senhor, Perdereis a caçadeira, Que ainda é perda maior. - Que importa, lavadeira! Aqui na minha algibeira Trago dobrado valor... Assim eu fora senhor De levar a vida inteira Só a ver o meu amor Lavar roupa na ribeira! - Talvez que fosse melhor... Ver coser a costureira! Vir de ladeira em ladeira Apanhar esta canseira, E tudo só por amor De ver uma lavadeira Lavar roupa na ribeira... É escusado, senhor! - Boas noites... lavadeira! - Boas noites... caçador!
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"Minha mãe, quem é aquelle Pregado n'aquella cruz? - Aquelle, filho é Jesus... É a santa imagem d'elle! "E quem é Jesus? - É Deus! "E quem é Deus? - Quem nos cria, Quem nos manda a luz do dia E fez a terra e os céos; E veiu ensinar à gente Que todos somos irmãos, E devemos dar as mãos Uns aos outros irmamente: Todo Amor, todo bondade! "E morreu? - Para mostrar Que a gente pela Verdade Se deve deixar matar.
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(A Silva Pinto)
Era já noite cerrada, Diz o filho: "Oh minha mãe, Debaixo d'aquella arcada Passava-se a noite bem!" A cega, que todo o dia Tinha levado a anadar, A taes palavras do guia Sentiu-se reanimar. Mas saltam dois cães de gado, Que eram como dois leões: Tinha-os à porta o morgado Para o guardar dos ladrões. Tornam os pobres à estrada, E aonde haviam de ir dar? Ao palácio da tapada Onde el-rei ia caçar. À ceguinha meia morta Torna o filho: "Oh minha mãe, Ali no vão de uma porta Passava-se a noite bem!" - Se os cães deixarem... (diz ella, A triste n'um riso amargo), Com effeito a sentinela: - "Quem vem lá?... Passe de largo!" Então ceguinha e filhinho, Vendo a sua esperança vã, Deitaram-se no caminho Até romper a manhã!...
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Grammatica Rudimentar - João de Deus
Aquelle Manuel do Rego É rapaz de tanto tino Que em lirio põe sempre y grego, E em lyra põe i latino! E como a gente diz ceia Escreve sempre ceiar; Assim como de passeia Tira o verbo passeiar! Nunca diz senão peior Não só por ser mais bonito, Mas porque achou num auctor Que deriva de sanskrito. Escreve razão com s, E escreve Brasil com z: Assim elle nos quizesse Dizer a razão porquê! Também como diz - eu soube Julga que eu poude é correcto: Temo que a morte nos roube Rapazinho tão discreto! É um gramático o Rego! É um purista o finorio... Se Camões fallava grego, E o Vieira latinorio!
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Andava um dia Em pequenino Nos arredores De Nazareth, Em companhia De San José, O bom-Jesus, O Deus-Menino. Eis senão quando Vê num silvado Andar piando Arrepiado E esvoaçando Um rouxinol, Que uma serpente De olhar de luz Resplandecente Como a do sol, E penetrante Como diamante, Tinha attrahido, Tinha encantado. Jesus, doído Do desgraçado Do passarinho, Sae do caminho, Corre apressado, Quebra o encanto, Foge a serpente, E de repente O pobrezinho, Salvo e contente, Rompe n'um canto Tão requebrado, Ou antes pranto Tão soluçado, Tão repassado De gratidão, De uma alegria, Uma expansão, Uma cadencia, Que commovia O coração! Jesus caminha No seu passeio, E a avesinha Continuando No seu gorgeio Em quanto o via; De vez em quando Lá lhe passava À dianteira E mal poisava, Não afrouxava Nem repetia, Que redobrava De melodia! Assim foi indo E foi seguindo De tal maneira, Que noite e dia N'uma palmeira, Que havia perto D'onde morava Nosso Senhor Em pequenino, (Era já certo) Ella lá estava A pobre ave Cantando o hymno Terno e suave Do seu amor Ao Salvador!
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Um cão apanha um coelho À margem de uma ribeira, Mas vendo-o naquele espelho, Larga-o, salta a ribanceira... E assim perde o que levava, E mais o que ambicionava! Abençoada prudência (E é esta a moralidade!) Quantos pela aparência Perdem a realidade!
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Lírica - José Blanc de Portugal
Rubianista Pianstein No seu Bechstein Vivo teclava A famosa "Java Do Embaixador". Em frente, No arvoredo, Embasbacado, O melro Alfredo, Deferente, Pensa no fado Do tal pintor.
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Epigramática - José Blanc de Portugal
Vermes da epigeia somos Nos poemas doutros astros; Nem lá novos parecemos... Como a velha burguesia dos actores Perdido do teatro o sacro antigo, Por demónios-animais nos tomam... Um dia será vulgar pedir O poeta pobre dois versos emprestados...
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Realista - José Blanc de Portugal
É real o jogo do xadrez. Mais não gostar do que se tem Outro jogo é. Mas o jogo da vida é falsidade apenas Diga quem a vive o que ela é.
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Bolsa do Comércio das Inteligências - José Blanc de Portugal
Abriu cedo a "Bolsa das Inteligências" Mas o mercado estava deserto e só dois atrasados Pediram um café e um galão. Mais tarde vieram mais dois combinar qualquer coisa. Mas, finalmente, antes do meio-dia, já havia tanta gente Que as acções da "Sociedade Anónima do Génio" Cotara "compra" e "venda" mas não "efectuado"...
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Sem Pressa - José Blanc de Portugal
Penélope: -- Doze vezes doze... Quatro vezes três... Desfazendo agora Logo recomeço. Teias da vida adiada São-me a possível vida. Quatro mais três cores A urdidura neutra Música sem voz Números calados Cada instante é reencontro Não há saudade. --Nós, os fios da vida, Forçados nos dedos dela seguimos A sua vida, não as nossas Ilegíveis Fala Penélope: "Vida Teia e urdidura vou cruzando... Vós, seus fios da minha vida, Gerais meus futuros filhos." Inertes nos seus dedos Respondem a Penélope: "As nossas cores São tua alegria."
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Morte na Neve - José Blanc de Portugal
Na vida em extremo Nem suplicou... Um instante mais e, Olhos parados Ossos alongados Um túmulo na terra figurou: Sem epitáfio, Sem carpideiras. Marcas não ficaram Só repouso: Nem a cor difere Igual ao cristal que a terra cobre. Só montículo insólito abaula Como ventre pejando a terra sob a neve.
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Ode a Lisboa - José Blanc de Portugal
Ó cidade, ó miséria Ó tudo que entediava Meus dias perdidos no teu ventre Ó tristeza, ó mesquinhez cativa Ó perdidos passos meus cansados Ó noites sem noite nem dia Ó dias iguais às noites Sem esperança de outros melhor haver Ou, pior, esperando alguém que não havia Ó cidade, ó meus amigos idos (tive-os eu ao menos como tal um dia dia?) Ó cansaço de tudo igual a chuva e o céu azul imenso Igual em toda a volta, meses de calor, Ou água suspensa, nuvens indistintas Ou cordas de chuva a não poupar-me! Igual, igual, igual por toda a banda Ó miséria de sempre! Tua miséria, ó cidade Minha miséria igual em tudo Igual às tuas ruas cheias Igual às tuas ruas desertas Igual às tuas ruas de dia Igual às tuas ruas de noite Igual à dos teus grandes E das tuas prostitutas Igual às dos teus homens corrompidos E, piormente igual à dos teus sábios! Ó cidade igual inigualada Por que te chamo perdidamente igual? Tua miséria não é miséria, Tua tristeza não é tristeza Tudo que me perdeste para ti não é perdido: Meus passos firmaram-te as pedras; Tuas noites foram o meu sol; Teus dias me foram descanso... Iguais, dias, noites, minha desesperança Era o próprio esperar doutras certezas: A certeza de só poder tornar-se O alguém que é forçoso haver! Os meus amigos idos Por tal seriam por certo perdidos Sei — como não? que existiram: Lá estão. Ó cidade! o cansaço seguiu-me — não era teu. Igual o tempo está comigo — não era teu... Igual, igual, igual por toda a banda. . . A miséria, o desalento aqui os tenho — Também não eram teus. Mas a gente era tua e eu também. Lá ficou; e eu, Ó cidade, ó miséria, Ó tudo que me entediava, Meus dias perdidos no teu ventre!... Sei que nada me pertence É tudo teu! E eu me glorifico por eu e os meus Sermos só de ti que és de Deus!
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