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Ensaio sobre Florbela

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Nota: Para se ter uma noção mais aproximada deste problema ( obediência da procura à oferta ) tenhamos presente o economista Keynes num texto longo mas que resumiremos no final quanto aos nossos objectivos, aqui muito pouco poéticos e Florbelianos:

Keynes e o Déficit Público
(Alan Henriques, 2002-08-01)

“Um país se enriquece não pelo simples ato negativo de indivíduos não gastarem todos os seus rendimentos em consumo corrente. Enriquece-se pelo ato positivo de usar essas poupanças para aumentar o stock de capital do país. Não é o avaro que se torna rico, mas o que aplica seu dinheiro em investimento frutífero.
O objectivo de concitar o povo a poupar destina-se a criar a capacidade de criar casas, estradas e assim por diante. Portanto, uma política destinada a tentar reduzir a taxa de juros pela suspensão de novos acréscimos ao stock de capital e, pois, pela contenção das oportunidades e dos propósitos de aplicação de nossas poupanças é simplesmente suicida”

(JOHN MAYNARD KEYNES) Inflação e Deflação.

Foram palavras como essas, que fizeram Keynes dominar boa parte do pensamento económico no século XX. Segundo Keynes, somente o Estado teria a capacidade para conferir equilíbrio e estabilidade ao sistema económico de uma nação. Isso deveria ser feito através de medidas para incrementar o pleno emprego e para desencorajar o entesouramento individual. Inspirando em parte o “New Deal” do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, a actuação estatal fez com que a economia americana fortemente envolvida no esforço de guerra, de Julho de 1940 até Agosto de 1945, fábricas e estaleiros norte-americanos produzissem quase 300 000 aviões, 86 000 tanques, 3 milhões de metralhadoras e 71 000 navios. Apesar de os impostos terem sido aumentados para custear todo o esforço de guerra, o deficit público norte-americano subira para 247 biliões de dólares - antes da guerra o deficit federal era de apenas 49 biliões de dólares.

As sucessivas flutuações económicas, depressão e desemprego alto, comuns em países capitalistas e altamente industrializados, levaram Keynes a estudar os motivos para tais fenómenos da economia capitalista. O economista britânico concluiu que o grande responsável pela alteração no nível de emprego é a procura de mão-de-obra e não a oferta, indo de encontro aos marginalistas.

Keynes defendeu muitas dessas ideias mesmo antes da terrível crise de 1929, mas ele só reuniu todas elas em um só corpo teórico em 1936, na revolucionária obra “Teoria Geral do Emprego do Juro e do Dinheiro”, o impacto político do livro foi enorme, enquanto a Segunda Guerra Mundial lançava o mundo em uma frenética corrida armamentista, o que levaria a demanda agregada para níveis antes nunca vistos, liquidando os efeitos da grande depressão, o desemprego era bem próximo de zero para fins estatísticos de 1942 a 1945, nos Estados Unidos, a taxa de desemprego mais baixo da história norte-americana foi de 1,2% em 1944. Só no pós-guerra que a lição Keynesiana foi aprendida e aplicada nos governos dos países industrializados : o pleno emprego tornou-se um objectivo explícito da mais alta prioridade nesses países. O “Keynesianismo” lançou raízes principalmente nos Estados Unidos, temerosos de que o regresso de 6 milhões de veteranos pudesse lançar o país em uma nova depressão. Em 1946, foi aprovada a lei do pleno emprego, pelo governo Truman que transformou em obrigação legal do Estado manter o pleno emprego mediante empréstimos e financiamentos de obras públicas.

De fato, com o estímulo dado com as despesas governamentais, impostas pelo conflito mundial, a crise do desemprego cedeu lugar à escassez de mão de obra na maioria dos países industrializados, todo o cerne da análise de Keynes se faz a partir do conceito de “Demanda Efectiva”(consumo mais investimento) que crescerá se o Estado gastar mais do que arrecada sob a forma de tributos (deficit orçamental) ou se o país conseguir exportar mais do que importar (excedente na balança comercial).

Segundo Keynes, o desemprego ou sub-emprego, seria resultado da demanda insuficiente por bens e serviços na economia e que o grande responsável por essa pequena demanda seria o entesouramento, as crises económicas e oscilações seriam resultado das variações nas propensões a investir e ao aumento pelo entesouramento, para resolver essa dicotomia entre consumo e parcimónia seria preciso dotar o Estado de políticas económicas eficazes no tocante a regulação da taxa de juros, mantendo-a baixa o suficiente para inibir a demanda de moeda para fins especulativos; incrementando o consumo através de empréstimos públicos que fossem capazes de absorver os recursos ociosos no sistema económico e colocá-los mais uma vez no funcionamento da máquina capitalista.. Isto geraria segundo Keynes o “Efeito Multiplicador”, ou seja, um aumento no investimento causaria um aumento proporcionalmente maior na renda.

As Taxas de Juros para Keynes se constituíam como um prémio pela renúncia à liquidez, para os keynesianos, o pior dos cenários económicos seria com toda a certeza a propalada “Armadilha da Liquidez”, na qual os que possuem activos monetários são unânimes na análise de que as taxas de juros, já se encontram tão baixas que seria impossível baixá-las ainda mais. Nessa circunstância entesourariam seus activos na espera de uma elevação nos juros. Algo parecido ao ocorrido com a economia japonesa durante a maior parte da década de 90, acossado por uma recessão as autoridades monetárias japonesas diminuíram os juros na esperança da retomada económica, entretanto, essa política só aumentou a alta taxa de poupança da economia japonesa afundando o Japão na pior recessão do pós-guerra.

Os críticos de Keynes, no entanto, associam o legado económico do economista inglês, como um incentivo ao Estado gastador e por vezes perdulário o que teria aumentado em muito o deficit público, temos como exemplo clássico desse fenómeno os Estados Unidos, em um momento histórico em que o crescimento do tipo Keynesiano foi primordial, a década de 60: quando acossado pela Guerra do Vietname o Estado norte-americano gastou como nunca, entretanto, a recusa do governo Jonhson envolvido com programas da “Grande Sociedade”, em aumentar os impostos incorreu em grandes deficits que viriam a alimentar a inflação da década de 70.

Com toda certeza, a mais feliz crítica de Keynes a economia neoclássica foi no tocante a Lei de Say, que estabelecia que a oferta criaria sua própria demanda, o que segundo Say impossibilitaria uma crise de superprodução, justamente o ocorrido durante a grande depressão iniciada em 1929, Keynes constatou que a Lei de Say se aplicaria somente em uma economia mercantil e jamais em uma economia monetarizada.

Dos postulados do Keynesianismo o que mais o aproxima de uma economia depressiva é a constatação da existência do desemprego involuntário, no que se diz respeito à demanda por moeda, a introdução da demanda especulativa e transaccional por Keynes revela a sua preocupação de que os agentes económicos não usassem a moeda apenas para transacção (consumo ou investimento) o que iria influenciar positivamente a demanda efectiva, e sim também para especulação (entesouramento) o que levaria a economia a um ciclo recessivo.

Diante de alguns números, torna-se clara a ligação de Keynes com deficits orçamentais, nos Estados Unidos país onde o Keynesianismo foi mais fortemente aplicado principalmente no pós-guerra e na década de 60, como já foi mencionado, o deficit orçamental no período de 1947-1967 foi da ordem de apenas –0.2 elevando-se para –0.8 no período 1961-1967, aumentando ainda mais para –1.1 no período 1968-1974, esses três períodos a política económica norte-americana ficou a cargo dos “Keynesianos Rigorosos” eles se preocupavam principalmente com a implementação do pleno emprego através do uso de política fiscal.

Os resultados colhidos nesses períodos no tocante ao desemprego, mostra bem isso de 1947-1967 o desemprego observado nos Estados Unidos foi de apenas 4,7% , no período 1961-1968 foi de 5,0% e no período de 1968-1974 foi de 4,9% , ou seja, sempre abaixo do pleno emprego que nos Estados Unidos é considerado de 5,0%. Esse tipo de política resultou em uma forte inflação de demanda de 8,8% em 1973 e 12,2 em 1974 as taxas mais altas registradas na história contemporânea dos Estados Unidos. O Keynesianismo Rigoroso teve seu canto do cisne quando em 1978, o congresso norte-americano aprovou a Lei Humprey-Hawkins (Lei do Pleno Emprego e Crescimento Equilibrado), que estabelecia metas anuais para a moeda e o crédito, era o início do ciclo monetarista sob a batuta de Milton Fridman que cunhou uma famosa frase “Não existe almoço grátis no capitalismo” ,ou seja, em outras palavras alguém teria que pagar pelos deficits Keynesianos.

O deficit público nos Estados Unidos, país mais influenciado pelo Keynesianismo se analisado dentro de um contexto histórico nos mostra, uma ligação directa entre deficits federais e guerras. A dívida do governo com relação ao tamanho do PNB, ficou próximo a zero em 1830, chegando até o recorde histórico de 129% do PNB em 1946, não por coincidência o ano em que o Keynesianismo estava no centro do debate económico internacional.

Segundo os críticos do Keynesianismo simples, o modelo de Keynes centra sua argumentação sobre a política fiscal, relegando a segundo plano a política monetária e seus efeitos sobre a economia real, entretanto, talvez a mais enfática crítica a Keynes e seu legado seja mesmo quanto a questão do deficit público que teria levado a economia a um crescimento não sustentável, já que a longo prazo esse deficit não sustentaria a política de pleno emprego e levaria a uma escalada inflacionária, porém, como dizia Keynes “No longo prazo todos nós estaremos mortos”.

Texto de Alan Henriques de Araújo.

O resumo é que o desenvolvimento do capitalismo na altura de Florbela puxava para as teorias Keynesianas e para o abandono das teorias defendidas por J. B. Say o que implicava uma maior presença do Estado como regulador do processo económico. Ao mesmo tempo tal implicava (como se veio a verificar posteriormente e ainda no tempo de Florbela quando do lançamento das bases económicas para a colonização) uma diminuição da poupança colectiva, o pleno emprego ou a tendência para ele (daí também o fomento da ideia da colonização) e implicava ainda o endividamento público (ou seja, a Casa da Moeda teria de imprimir dinheiro de acordo com as possibilidades e mesmo sem suporte substancial - relacional com o Produto Nacional Bruto (PNB) ou mesmo com o Produto Interno Bruto (PIB).

O endividamento, logicamente seria suportado pelas gerações vindouras, que segundo as teorias de Keynes viriam a ser beneficiárias a médio prazo dos resultados dessas concepções monetaristas, recebendo o feedback da curva inflacionista e podendo assim pagar mais impostos de forma a reduzir progressivamente o endividamento.

Ora, por um lado, o Estado em Portugal estava muito longe de puder vir a cumprir a sua missão e por outro lado a estrutura ainda semi-feudal não produzia poupança nem estava talhada para o investimento, muito especificamente na região alentejana (que é o que nos interessa embora esta não possa ser desligada do todo nacional macroeconómico).

Região de latifúndio, apostada (ou acomodada) à exploração extensiva era "governada" pelos grandes proprietários absentistas (alguns deles eram intelectuais conhecidos que viviam das rendas e alguns deles também presentes nos centros de decisão nacional).

As influências deste estado económico das coisas via-se na própria actividade profissional do seu pai, antiquário, que naqueles tempos seria mais um intermediário que "transportava" as riquezas em jóias e antiguidades das mãos dos grandes proprietários terratenentes para as mãos dos novos ricos burgueses, dada a quebra consequente das rendas latifundiárias que desciam na proporção inversa em que subia o poder económico da burguesia.

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Carta A

«Li hoje um livro que me consolou. A única coisa que consola os tristes é a tristeza; não te parece? (...) Chamava-se o desgraçado Silva Pinto; chama-se o livro "Neste Vale de Lágrimas". Conheces o desgraçado? Conheces o livro? É belo e consolador (...) Como eu o compreendi e como tão da alma o sinto! (...) A propósito do suicídio lembra-me uma parábola indiana que é simplesmente um mimo. (...) É uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de cobardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo, embora essa vida seja apenas um pântano infecto e imundo!»

regressar ao texto inicial

 

Américo Durão e «Soror Saudade»

Colega de Florbela na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e um dos mais próximos da poetisa durante os seus estudos universitários (diz dela, inclusive, que tinha em si qualquer coisa de chama), Américo Durão é o criador do epíteto «Soror Saudade».

Américo Durão – 1893 – 1969 – é o autor da seguinte bibliografia:

Vitral da minha dor, 1917;

Tântalo, 1921;

Lâmpada de Argila, 1930;

Tômbola, 1942;

Ecce Homo, 1953 e Sinal, 1963.

É referido como contendo "laivos" de sebastianismo nalguma da sua poesia, sendo integrado na poética do saudosismo por Fernando Guimarães, ao lado (ainda que com distância) de Teixeira de Pascoais e Leonardo Coimbra. Como nota à margem e a merecer maior desenvolvimento esclareçamos que o Prof. Guido Battelli escreveu sobre Teixeira de Pascoais em 1953. De esclarecer ainda que Américo Durão não é referido por António José Saraiva e Óscar Lopes na sua História da Literatura Portuguesa, devendo-se já a David Mourão Ferreira, Jacinto do Prado Coelho e José Carlos Seabra Pereira e Fernando Guimarães a sua inclusão quer como poeta a merecer referência quer no período neo – sebastianista.

Aliás, pensamos que a evidência do poema do que segue obrigava quase imperativamente à inclusão de Américo Durão no Sebastianismo e no Saudosismo Pascoaliano:

 

D. Sebastião

 

Manhã de névoas. Misteriosamente

As coisas ganham atitudes vagas.

Nevoeiro denso, diz-me porque afagas

A lenda doida, a esta doida gente?

 

Ascende ao Sol religiosamente,

Oiço um fremir de escudos e adagas….

Coração, coração, porque divagas

Na esperança do mesmo eterno Ausente!?

 

Cerra-se mais o nevoeiro e faz

Subir a Fé nos corações! Ninguém

Pode abafar seus gritos na garganta!...

 

Uma bandeira branca – a névoa! Traz

Suspensa aos astros…Vede, olhai, lá vem

O Herói que a Raça moribunda canta!

 

Américo Durão, Tântalo, Lisboa, 1921.

 

Sem querer (mas sendo obrigados por força da coerência do texto) deixamos um pequeno extracto de Teixeira de Pascoais sobre esta na altura candente questão do sebastianismo e da regeneração psíquica da "raça" que perpassa por todo este período de princípio de século, aparentemente motivado por dois acontecimentos que foram considerados fulcrais pela intelectualidade portuguesa: O ultimato Inglês de 1890 e a instauração da República em 1910.

Esta questão histórica e política terá um maior desenvolvimento em separado e em altura própria.

Diz Pascoais:

"(…) Sim, porque a alma do nosso povo é, entre as almas dos outros povos, a que descende mais directamente da Terra e do Céu; é a Buttere consciente e inteligente mais autêntica do Universo; e, por isso, tem diante de si um grande futuro. (… ) (…) O vento arrepela-os ( aos poetas desta corrente ), o granizo bate-lhes na fronte, e o silêncio que os cerca, é um enorme fantasma em lágrimas, sufocado num soluço infinito…É o fantasma camoniano da Pátria e da Natura; é o Encoberto doloroso e incompreendido como eles. Anda errante, cheio de frio e fome: um frio de três séculos e uma fome de três séculos…(,,,)."

Esta periodização de "três séculos" tem a ver com a queda do Império por efeito de D. Sebastião e com a ocupação espanhola que foi até 1640. É o quase eterno dilema entre a mendicância e a extrema riqueza, ou a riqueza que se julga merecida, presente, por exemplo no poema IX de Florbela : " Perdi os meus fantásticos castelos /…./ Olho assombrada as minhas mãos vazias". (Ver abaixo o poema de Durão: "Existo?")

Ser pedinte em termos poéticos era algo digno de dó, mas uma dó impulsionante e revoltada ( ainda que aparentemente só verbalizada ) que "trabalhava" como antítese obrigatória de uma síntese que seria a reformulação, reconstrução, reconstituição, reagrupamento etc. do todo poético e nacional. Florbela é pedinte de amor por recorrência na sua poesia o que faz contudo na mesma perspectiva, ou seja, considera já o ter tido ( o amor ) e tê-lo perdido vendo-se assim obrigada a mendigar esse mesmo amor, que aliás nunca lhe é facultado.

Mas a isto voltaremos…por ora regressando a Durão:

É Américo Durão quem, em Dezembro de 1919, publica na página literária do jornal «O Século» um soneto intitulado «Soneto», dedicado a Florbela, e no qual lhe chama «Soror Saudade».

Paralelamente, o jornal publica também a resposta de Florbela, um soneto chamado «O Meu Nome», que, posteriormente, terá o seu título alterado para «Soror Saudade». Nos primeiros dias do ano seguinte, Américo Durão envia à poetisa, então a passar as férias de Natal em Vila Viçosa, a página onde os sonetos vêm publicados, e que ela muito agradece.

"(…)Mas quem é, no fundo, «Soror Saudade»? Pode ser um sinal da singularidade da poetisa, mas é, sobretudo, um símbolo de uma estratégia de ocultação que ela inicia com o «Livro de Soror Saudade»,(…)" diz-se algures num dos inúmeros textos que li e recolhi. " (…) Afirmando a sua distância em relação a outros autores, Florbela assume o epíteto de «Soror Saudade» criado por Durão, utilizando-o durante todo o livro, e apenas se libertando dele em «Charneca em Flor». É uma espécie de aura de clausura em que se envolve. (…)"

Mas comecemos pelo princípio da saga de Soror Saudade: LIVRO DE SOROR SAUDADE – Florbela Espanca – 1923

EPÍGRAFE

Irmã, Soror Saudade, ah! se eu pudesse

Tocar de aspiração a nossa vida,

Fazer do mundo a Terra Prometida

Que ainda em sonho às vezes me aparece!

 

Américo Durão

 

(Nota de D.T. : trata-se de um poema nitidamente influenciado pelo sebastianismo).

 

Il n'a pas à se plaindre celui qui attend

un sentiment plus ardent et plus généreux.

Il n'a pas à se plaindre celui qui attend

le désir d'un peu plus de bonheur, d'un

peu plus de beauté, d'un peu plus de justice.

Maurice Maeterlinck

(La Sagesse et la Destinée)

 

Nota de D.T. : Maurice Maeterlinck (1862-1949). Escritor e dramaturgo belga. Principal representante da estética simbolista no seu país. Prémio Nobel em 1911. Maeterlinck foi, na dramaturgia, o principal representante da estética simbolista, tendência que surgiu em França no fim do século XIX como reacção à rigidez parnasiana e à crueza do naturalismo. A fala acima para quem não percebe francês e mesmo para quem percebe é praticamente vazia de conteúdo: quase um ditado; não deve lamentar-se por se lamentar aquele que deseja coisas consideradas puras ou honestas, neste caso, bem-estar (ou gozo beatífico), um sentimento mais ardente ou mais generoso, mais beleza ou mais justiça. Não era preciso citar o Maeterlinck numa obra tão rica nesta banalidade.

SOROR SAUDADE

Florbela Espanca a Américo Durão

 

Irmã, Soror Saudade me chamaste…

E na minh'alma o nome iluminou-se

Como um vitral ao sol, como se fosse

A luz do próprio sonho que sonhaste.

 

Numa tarde de Outono o murmuraste,

Toda a mágoa do Outono ele me trouxe,

Jamais me hão-de chamar outro mais doce.

Com ele bem mais triste me tornaste…

 

E baixinho, na lama da minh'alma,

Como bênção de sol que afaga e acalma,

Nas horas más de febre e de ansiedade,

 

Como se fossem pétalas caindo

Digo as palavras desse nome lindo

Que tu me deste: «Irmã, Soror Saudade…»

 

Nota de D.T.: De notar que o termo "vitral" aplicado por Florbela deve ser uma referência ao livro de Poemas de Durão " Vitrais da Minha Dor" publicado em 1917 embora já se encontrasse publicado o "Tântalo" desde 1921.

 

Não vamos agora desenvolver aqui a "clausura" filosófica assacada a Florbela Espanca no texto acima que foi retirado algures das nossas notas recolhidas…Parece no entanto evidente que ela terá gostado do epíteto "Soror Saudade" e tê-lo-à acarinhado por duas razões evidentes possíveis: uma, porque se identificava à priori com ele, outra porque se começou a identificar à posteriori com ele, o que parece ser a linha de raciocínio seguida acima.

Como já temos vindo a demonstrar ao longo do que temos escrito sobre a personalidade de Florbela Espanca a nossa opção não pode ser essa: nem Américo Durão criou um epíteto vazio de sentido que Florbela iria encher nem Florbela aceitaria um epíteto que não fosse coincidente com a sua forma de pensar.

Aproveitamos para inserir alguns poemas de Américo Durão

 

Existo?

 

Cingindo esta mortalha de estamenha

Fiz voto e penitência de morrer,

Sem que os meus braços numa cruz sustenha,

Quando não baste a Fé para os suster!

 

Sigo, pálido asceta da montanha,

Na bíblia da Minha Alma absorto a ler

Meditações, sobre a tragédia estranha

Dos que passam na vida sem viver…

 

No meu convento desolado e frio,

Ecoa pelo claustro um som vazio:

Apalpo-me…procuro-me…tacteio…

 

Alongo os olhos pela sombra fora…

- São os passos de Alguém que Se ignora,

É sempre o mesmo nada, o mesmo anseio!

 

(Vitral da Minha Dor, 1921)

 

Eu

 

O vago em Mim concebo e realizo,

Vivo no que há-de ser!

A minha vida é feita de impreciso,

E tenho-me esquecido de a viver!

 

Eu não tenho passado nem futuro.

Sei lá se vivo ou não!

Sou um sonho de Deus, uma visão.

Abraçando na vida um sonho escuro…

 

Sou o Passado em sombras, e o Futuro em brumas.

Não sou porque não sou, e mais não sei dizer!

 

- Alegrias são leves como espumas,

Mágoas são vidas no Inferno a arder!

 

Eu sou, Jesus, o eco do teu medo:

Por isso eu amo as coisas de que tremo…

Se existo, a minha vida é um degredo!

Por minhas mãos de escravo é que me algemo…

 

Mas não existo…

- Sonho errante de Alguém que muito amou,

Sou a sombra nostálgica de Cristo,

Sou tudo o que há-de vir, e já passou!

 

"Quem vive?", pergunto eu.

Meus olhos olham a esmo.

Ando a buscar-me no Céu!

- Sou o Sonho de Mim – Mesmo!

 

(Vitral da Minha Dor, 1917)

 

Silêncio

 

Elegias de som dançam no ar.

São a voz do Silêncio agonizante,

Apercebida apenas no instante,

Em que o Silêncio cansa de falar.

 

Não há sombra nem luz, e oscilante,

Unge a penumbra Céu e Terra, e Mar!...

Cantos de Salomão, sem os cantar,

Ninguém melhor do que o Silêncio cante!

 

Ele é a voz das emoções supremas,

Incensos, cantos, orações, poemas,

Em si, tudo condensa e nos traduz!

 

Cantos da bruma soam doloridos…

Acordam para Além os meus sentidos,

E a sombra do Silêncio abre-se em luz!

 

(Vitral da Minha Dor, 1917)

 

Tântalo

 

Se alongo um braço esvai-se tudo!... e a vida,

Cadáver que ao mar Jesus lançasse,

Na maré cheia desta dor, vencida

Lembra um astro que o fogo abandonasse!

 

Cai a chama do Sol adormecida:

Seu lívido clarão me inunda a face…

E acorda de mim tão branco, tão sumida,

Como se nos meus olhos se apagasse!

 

Impérios, oiro…a tudo ambicionava!

E agora sei que só me torturava

A dor sem nome de nascer vencido…

 

Quando em meu peito o sol florir um dia,

Já nestas mãos a rosa da alegria

Se desfolhou sem nunca ter abrido!

 

( Tântalo, Lisboa, 1921 )

 

O último Soneto

 

É esse o meu soneto! – esse que um dia,

Eu prometi solene à minha Raça!

- Se passo, a minha sombra é já quem passa…

E eu nem a minha sombra conhecia!

 

Levo aos lábios a Morte numa taça

Em ritos da sagrada liturgia!

Tendo no rosto a altiva bizarria

Dos que sabem ser grandes na desgraça!

 

Já nem a estrela de alva tremeluz…

Amai a sombra e certo dia, ao poente,

Matei o Sol!...O Sol… O Sol… Jesus!

 

Ó mãe, hei-de igualar-me à outra gente,

Viver!...Anda arrancar-me desta cruz!

Quero viver…e amar – o Sol nascente!

 

( Tântalo, 1921 )

 

E ainda um poema que capturamos algures na Net, sem referência de publicação e atribuído a Américo Durão:

 

Leilão

Quem compra, quem merca sonhos?

Quem quer meu corpo? Quem quer?

Quem merca os beijos tristonhos

dos lábios duma mulher?...

 

Todo o imenso amargor

trago neles diluído...

E vendo-os seja a quem for!

Quem compra, quem é servido?

 

Minh'alma de meretriz

é negrinha de pecados;

só do corpo vos servis,

eu vendo o corpo aos bocados...

 

Quem mercar, tenho certeza,

não se há de arrepender..

Tenho de meu a tristeza,

mas dou e vendo prazer...

 

Quem compra, quem merca sonhos?

Quem quer meu corpo? Quem quer?

Quem merca os beijos tristonhos

dos lábios duma mulher?...

 

Em quase todos os poemas acima transcritos de Américo Durão se pode verificar, a nosso ver, uma incontestável melhor qualidade poética do que aquela que encontramos em Florbela Espanca. Parece-nos também evidente que falta alguma da "Alma" do nome de Florbela Espanca.

Entre outras razões, e embora Américo Durão não conste entre os nossos maiores poetas (tal como não consta embora conste em maior medida António Nobre), o problema que se nota desde logo é que existe uma incontestável (a nosso ver) "arte de fazer poesia" que amputa a expressão da intimidade que Florbela nos propicia.

Mas este assunto, e outros, são para ser continuados ( até que os dedos nos doam!).

Daniel Teixeira

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FLORBELA E O FEMININO

Temos ido defendendo ao longo do nosso conjunto de textos, por razões que são não só de convicção mas também perfeitamente prováveis, que a existência de uma separação feminina na escrita de Florbela Espanca é, quanto a nós abusiva. Não só o dizemos porque temos fundamentos para aceitar a não existência de uma literatura feminina, mas também o dizemos porque acreditamos piamente que o epíteto de "escrita feminina" é apenas um eufemismo para continuar a sub – valorizar o "ser" feminino escritor / poeta.

Longe de nossa ideia supor sequer que tal convenção exista de outra forma que não a inconsciente ou histórico – cultural na grande parte dos casos. Uma outra observação que devemos fazer é que o tema feminino não se esgota, nem como assunto nem como trabalho nosso nestas páginas. Em bom rigor apenas tocámos numa percentagem ínfima dos textos que tínhamos colocado de lado para este trabalho, textos de nossa escolha esses que não são também senão uma percentagem seguramente ínfima de tudo aquilo que se possa dizer sobre esta questão.

Se formos ver, no caso concreto de Florbela Espanca, o caminho que a retirou do anonimato, veremos que, quer através de Jorge de Sena, quer através de José Régio, quer através do pré – anunciado Américo Durão com o termo Soror Saudade – quer através de outros autores que iremos referir, se valer a pena, ao longo do texto – veremos, repetimos, que foi o facto de ser mulher e de ter uma escrita inscrivível no termo feminino que a trouxe aos poucos olhos da ribalta que lhe têm estado reservados.

Ainda hoje, as próprias teóricas da literatura que se têm debruçado sobre Florbela Espanca, fazem realçar este aspecto e fazem, inclusivamente dele, uma forma de superação feminista sobre o masculino extremamente interessante para questões de análise psicológica. Ora, o feminismo, nos seus alvores, foi essencialmente uma masculinização da mulher e não uma afirmação da sua identidade.

Uma das primeiras obras que trata das iniciativas das mulheres, a peça Lisístrata de Aristófanes (Sec. V A.C.), para além de ser uma comédia de dúbia interpretação quanto aos seus objectivos (a guerra, principal objectivo das grevistas femininas, não acaba, em rigor, apenas resulta numa união entre as partes antes em guerra para outras guerras contra outros inimigos agora comuns) trata, na sua base, de uma greve sexual a praticar por mulheres Atenienses e mulheres Espartanas, com o condimento destas deverem arranjar-se ainda melhor em termos sensuais e espevitarem sexualmente os seus esposos.

Aristófanes faz várias referências ao desnorte dos homens neste plano numa sociedade em que as referências escritas à sexualidade não são abundantes e numa sociedade onde os homens viam as "obrigações" conjugais como isso mesmo: uma obrigação e onde a homossexualidade era mais regra que excepção; mas deixemos estes pormenores colaterais…

A estrutura social em Esparta e Atenas mantém-se na mesma, o patriarcalismo apenas é posto em causa de forma pontual e superficial e a relação familiar não se altera. A revolta das mulheres não pretende, em Aristófanes, subverter o relacionamento nem sequer tem pretensões a qualquer tipo de igualdade entre os sexos. O caso da conceptualização da literatura feminina, é, para nós, uma forma semelhante. A mulher, a partir de uma dada altura, começa a ter "autorização" para escrever e publicar, mas escreve no "feminino".

Sem procurarmos ser exaustivos tentaremos um dia fazer uma dissertação sobre o relacionamento entre os sexos, em termos quantitativos na sua proporção homens / mulheres, para vermos até que ponto um "excesso" de mulheres não terá fundamentado uma parte substancial do então feminismo, uma vez que nos parece ser aceite quase universalmente que o trabalho / produtividade terá funcionado como elemento libertador da mentalidade feminina e na sua consequente imposição perante a masculinidade, o que a nosso ver é muito pouco e tem muito pouca substância.

As mulheres sempre trabalharam e nalguns casos são a garantia do verdadeiro sustento de toda a prole desde há milhares de anos sem que com isso, ou por isso, se tenha alterado o relacionamento familiar. Mas isso são outras contas de um outro rosário…

Só como exemplo, sobre o que é ser-se feminina, pelo menos naquela época, e como falámos já de Marie Bashkirtseff neste nosso trabalho, vejamos o que diz José Régio ( o mesmo que acarinhou Florbela Espanca no seguimento de Jorge de Sena ) sobre uma outra poetiza da época, Judith Teixeira ( 1880 - 1959 ):

( …) " Os impropérios contra Judith Teixeira haveriam de surgir até dos que ao tempo elogiavam Botto, como é o caso de José Régio:

"(…) todos os livros de Judith Teixeira, não valem uma canção escolhida de António Botto"(…).

Ora, Judith Teixeira é uma excelente poetisa, e sem se pôr em causa o valor de António Botto, com ela e Mendes Leal também vítima de uma ofensiva dos defensores da ditadura instaurada em 1926, temos para nós, que a qualidade da poesia de Judith ultrapassa largamente na nossa opinião a qualidade da poesia de Florbela Espanca, conforme se pode ver pelos poemas que publicamos em separado e no tema poesia ( Ver Judith Teixeira ). Sobre a repressão, vejamos o comportamento de um "velho" conhecido dos portugueses (Marcelo Caetano):

"O livro "Nua" foi anunciado pelo poema "A cor dos sons", publicado na revista "Contemporânea", n.º11. Em Junho, já com o livro à venda, sairia no jornal "Revolução Nacional", (jornal de propaganda da ditadura onde se insultavam os directores de quase todos os outros jornais), um texto onde era referido o livro "Nua" de Judith, como "uma das vergonhas sexuais e literárias" e apelidados os seus poemas de "versalhadas ignóbeis".

Marcelo Caetano escreveria ainda, no jornal "Ordem Nova" (de que era fundador e redactor), que tinham aparecido nas livrarias uns livros obscenos, apelidando Judith de desavergonhada, e onde se vangloriava pela cremação dos livros dela, de Leal e de Botto, a que chamava de "papelada imunda, que empestava a cidade". Judith Teixeira, depois de enxovalhada publicamente, ridicularizada, apelidada de lésbica e caricaturada em revistas, defendeu-se e contra-atacou na conferência "De Mim", cujo texto se apressou a editar."

Acresce que, de facto, e ao que tudo indica, Judith Teixeira foi lésbica, condição comportamental de homossexualidade que não era permitida ás mulheres mas que o mesmo Régio tolerava em António Botto (dada a qualidade da sua poesia, como nos parece evidente). Acresce ainda que Judith não se ficou pelos lamentos magoados e respondeu, numa atitude que se pode agora considerar excessiva para uma mulher na época.

Não tenhamos ilusões, parafraseando e sobretudo citando agora Jorge de Sena: " (…) O mundo não perdoa ao poeta (…) logo que a mulher se afirme não como independente e livre, mas, embora dependente e aprisionada, como mulher. (…) "

Ou seja, segundo esta parte do texto entendemos que qualquer manifestação de feminilidade, mesmo aquela que não ponha em causa a estrutura familiar e social vigente, é, para o "mundo" referido por Jorge de Sena, imperdoável. ( Ver o dito acima sobre Lisístrata ).

" (…) Não basta reconhecer e dignificar, digamos, funcionalmente, a mulher. É preciso aceitar-se a dualidade de cultura que é consequência fatal da dualidade dos sexos. Porque a instrução toda, desde a primária à superior, e a educação cívica são, e têm de ser, assexuadas. (…) "

Aqui entendemos que o corrente, em termos de vivência e em ternos de instrução "oficial" é assexuado não porque seja igualado em termos de diferenças sexuais, mas sim porque é ignorado. Logo, não se faz, nestes campos, cultura masculina ou cultura feminina, de uma forma declarada, passa-se por cima (sublima-se) a contradição, nivelando, como será claro, na conceptualização predominante.

" (…) Mas a cultura, aquilo que se não ensina, nem a um nem a um curso, aquela formação que depende do indivíduo, é masculina ou feminina, embora civilizacionalmente muitos elementos possam ser considerados ora como masculinos ora como femininos, até de classe para classe de uma mesma sociedade. ( …) "

Aqui entendemos que, a partir da altura em que entra no campo da autonomia funcional em termos de aquisição de cultura, a sociedade (o "mundo" - segundo Sena), logo se encarrega de distribuir as coisas entre os dois sexos, de forma a que a cada um dos sexos caiba a sua cultura, sabendo esse "mundo" antecipadamente que, na impossibilidade de sublimar a questão a este nível (que por natureza escapa a quaisquer formas de controle), como fez na primeira escala vista atrás, lhe convém mais a separação do que a unificação cultural entre masculino e feminino, sabendo desde logo que tem boas bases de partida e um bom background para implicitamente nem precisar de impor a conceptualização predominante masculina. E acrescenta Jorge de Sena:

" (…) E não é a separação dos sexos que favorece a formação dessas culturas. A separação dos sexos não cria harmoniosas formas complementares, mas fantasiosas formas de auto – complementação. (…) "

Nesta parte do texto entendemos que a formação dessas culturas não é um resultado necessário da necessária separação identitária dos sexos. Porque, conforme diz o autor, a formação dessas culturas separadas não é uma harmoniosa forma de complementação mas sim uma fantasiosa forma de complementação. Por outras palavras quererá o autor dizer (embora se tenha de reconhecer que poderia ter sido mais corajoso) que a separação entre cultura masculina e feminina, ou a identificação a uma cultura – literatura, poesia, etc. feminina, uma vez que só esta se tem que afirmar como tal, ou seja, como excepção – é, e será fantasiosa, e logo não uma realidade substancial.

E é isso que Sena encontra na poetiza que retrata (que chama de Poeta em generalização): Florbela Espanca. Mas como?! Isso não se vê, aqui e desde logo. Teremos de nos debruçar mais sobre o texto para obtermos aquela resposta que se subentende desde logo. Florbela Espanca tem consciência da sua condição feminina e tem consciência dos limites que o "mundo" referido por Sena impõe.

Inclui-la no campo daquelas que acima foram citadas, como afirmantes da sua identidade feminina, parece ser o caminho escolhido por Sena. Ou seja, alguém que não foi além (e já terá sido muito e para alguns de mais) da revolta dentro do sistema. Por isso, é de demonstrar manifestações dessa consciência que Sena trata ao longo do seu trabalho e nunca de defender uma situação que considera de fantasiosa.

Não podemos deixar aqui de fazer o reparo sobre um aspecto que consideramos essencial: a pretensão de Sena não é a de defender ou demonstrar a especificidade feminina para além do "razoável" aceite pela sociedade, mas sim envereda por uma tentativa de, ele também, mexer nas coisas por dentro…ou seja, pretende enquadrar a revolta Florbeliana não em limites já construídos, mas sim pretende enquadrá-la através de uma tentativa intelectual de alargamento do continente psico – social – cultural.

Por palavras mais simples, e conforme veremos mais à frente, Florbela não foi uma "desavergonhada" como alguns pretendem. Aquilo que ela fez e escreveu inscreve-se perfeitamente dentro de parâmetros razoáveis, e aceitáveis pela razoabilidade do mundo. Se este não a aceitou não foi por culpa dela ou por culpa daquilo que ela tenha dito ou feito mas sim por erro de juízo. É um truque retórico interessante que se enquadra perfeitamente dentro das possibilidades de aceitação psico – social da altura ainda que seja um truque arriscado. Coisa que José Régio e muitos outros parecem não ter compreendido então e muitos anos mais tarde. Diz Sena:

" (…) Exactamente o contrário do que propõe o Poeta de que nos vamos ocupar – Florbela Espanca.

Aquele soneto "a uma rapariga", é, por certos sectores, considerado, passe o termo, uma apologia da desvergonha, precisamente pelas razões que expus. Mas desenganemo-nos; porque, se é valorizado por outros sectores, é – o por oposição ao moralismo dos primeiros – e não por aquilo que é, com a pureza possível: um ideário do destino feminino. (…) "

Sena reconhece, tal como qualquer pessoa razoável não poderá deixar de reconhecer, que uma parte substancial dos apoios que alguém recebe, muitas vezes, não são apoios à sua própria pessoa ou àquilo que ela fez, concretamente. São sim contra – apoios (rejeição) das posições que outros na posição contrária defendem.

O poema "A uma rapariga", dedicado a Nice, fala disso mesmo, do alargamento de horizontes continentes. Daí poder ter havido, e houve, algumas críticas: aliás a situação mais fácil, numa sociedade como a de então (mesmo em 1946 data do escrito de Jorge de Sena), para deitar abaixo qualquer mulher que mexesse era apelidá-la ou de devassa ou de infiel. Judith Teixeira foi bem mais longe que Florbela, conforme veremos em separado.

Fala, ainda o poema, da confiança de que o tempo fará nascer uma outra coisa que vá para além do destino de ser "apenas" mulher.

"A uma rapariga

 

Abre os olhos e encara a vida! A sina

Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!

Por sobre lamaçais alteia pontes

Com tuas mãos preciosas de menina.

 

Nessa estrada da vida que fascina

Caminha sempre em frente, além dos montes!

Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!

Beija aqueles que a sorte te destina!

 

Trata por tu a mais longínqua estrela,

Escava com as mãos a própria cova

E depois, a sorrir, deita-te nela!

 

Que as mãos da terra façam, com amor,

Da graça do teu corpo, esguia e nova,

Surgir à luz a haste de uma flor!...

 

Florbela Espanca, in Charneca em Flor "

 

In Florbela Espanca, Jorge de Sena, 1946. (…)"

 

Trabalho e recolha de Daniel Teixeira

 

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