LISTA DE POETAS POR ORDEM
ALFABÉTICA DO PRIMEIRO NOME
Leia uma análise da poesia
deste autor carregando aqui
Existo em charcos - Francisco Arcos
Existo em charcos, ainda inédito, em sofisma,
e emano à tarde em sombra olhando o sol no ocaso.
- Oh, vem à paz de mim, mulher, planta num vaso
essa expressão de olhar saudosa de quem cisma!
Planta-a num vaso e vem! É jardineiro o acaso.
Se soubesses a paz! À noite, a lua abisma
e, se lhe peço a tua lenda. o luar diz-ma
neste silêncio em que me expando e em que me abraso.
A indiferença, à flor da água, espera um susto.
-Oh, vem mulher! Mas nua de expressão visual:
Deixa o olhar nas ocas órbitas dum busto.
A lua chega. Ao longe avança, triste, alguém:
És tu, de olhar fechado, em sonolência, oval.
( Na paz dum charco, os dois, morremos muito aquém.)
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Caminhas, lânguida...-Francisco Arcos
Caminhas, lânguida... Vais...vens, isócrona e sorrindo,
indiferente à rotação do mundo. O plano é fixo-
- esse teu plano invariável, branco, imenso, infindo.
Mulher és Cristo fêmea ( a tua vida é um crucifixo ).
E a corda oscila, enquanto eu na mágoa sou prolixo.
-Não vás! Não venhas, como onda! Eu quero e não prescindo
da tua inércia - a nossa inércia azul, o ponto fixo!
( E vais e vens, enquanto eu, entre astros mortos, findo...)
- Quero beijar-te inerte. O nu é inerte. O amor é inerte.
- Não vás! ( E foi ). - Oh, como a ânsia é compulsora e bárbara!
- Não venhas, pára! ( E vem num ritmo feroz que me diverte...)
- Não vais, não vais! ( Agarro-a, aperto-a, beijo-a) .E vou também.
E torno a vir... Vamos os dois... Voltamos ambos... – Pêndulo:
Longos períodos; um eixo imaterial no além.
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A esposa estéril lava bibes na sacada - Francisco Arcos
A esposa estéril lava bibes na sacada
numa hipotética visão de dor cinzenta.
Filhos, não tem; mas vai de vez em quando e tenta
fingir que embala um berço em flor que não tem nada.
Os seios tombam-lhe no tédio que acalenta
e a boca murcha num sorriso é pó de estrada
que o vento leva, num degredo, de longada
até ... ( Sei lá, se na distância a vida é lenta...)
E o berço dança, enquanto a mãe-hipótese o embala,
como fantasma a naufragar no ar da sala...
Sentem-se passos nos degraus, no patamar,
abre-se a porta, e surjo eu, que sou o esposo,
em ânsias por sentir o incalculável gozo
de ver no berço alguém para matar.
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Amar-te é esquecer - Francisco Arcos
Amar-te é esquecer que no teu ventre amadurecem óvulos
atentos e expectantes
como todas as coisas do Universo.
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Falemos, na humidade untuosa dos arbustos - Francisco Arcos
Falemos, na humidade untuosa dos arbustos,
de tudo quanto é um resvalar sem darmos conta.
Deixemos, ambos, nossas mãos pingando sustos
omo ainda hoje das figueiras pinga a afronta
do vendedor de Cristo! E vamos quebrar bustos
de heróis e mártires! Corramos, ponta a ponta,
a esguia nave do silêncio onde há vetustos
poemas! Saudemos uma aurora que desponta
e nos pincela a ambos de branco, e nos descarna,
tornando-nos reais e agudos como gumes!
Pisemos cachos de uvas entre os dedos brancos!
A vida é como o vento, espicaçando a sarna
de sermos tu e eu nos vales e nos cumes,
e sempre tu e eu no mar e nos barrancos!
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Quando a princesa esquece as mãos - Francisco Arcos
Quando a princesa esquece as mãos por entre as flores
de um jardim branco, orço carícias e sorrisos
em chãos de névoa e agito, a rir, nuvens de cores
que assustam aves. ( Anda um rei, por duros pisos
em busca dela, e traz falcões, pajens, senhores...)
Alguém deixa escorrer seu luto em vidros lisos
de janelas feudais e, em velhos corredores,
perverso bobo guincha e abafa o som dos guizos.
O rei sugere um deserdado: As rugas
são tão profundas como os leitos secos
dos rios mortos. Só as nuvens treinam fugas
no espaço lento. O resto jaz, inerte pano,
tal como jazem as mãos brancas da princesa
entre o marfim das teclas mortas de um piano.
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Aqui jaz a menina viva - Francisco Arcos
Aqui jaz a menina viva com tudo morto no regaço.
E tudo porque as nuvens pousaram sobre as árvores
e as raízes das árvores, sedentas,
se desenterraram em busca do vento,
quando a menina cantou a Primavera
com a cabeça encostada à sua virgindade.
O tempo fez o resto.
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No meu olhar - Francisco Arcos
No meu olhar, onde se alonga a vaga ausência
da realidade externa, enquanto o ser se inclina,
some-se a auréola entre muros em ruína
e a sombra fica num indício de existência.
Escrevo versos sempre iguais, numa cadência
de desalento? Há uma expressão que me domina:
o ricto parvo do luar que abraça a esquina
da minha rua - escrevo-os, pois, por consequência...
Abuso do luar? A vós, que vos importa?
Sumiu-se a auréola entre muros velhos, gastos,
e só ficou a sombra - indício de quem amo.
Abuso do luar? A minha irmã está morta.
Sinto-lhe a ausência. Em mim, há fímbrias dela. E vou, de rastos,
para de longe eu mesmo responder por quem não chamo.
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Encharquei lonas de tristeza - Francisco Arcos
Encharquei lonas de tristeza em lagos secos
onde, no fundo, a náusea de viver é um braço
de paralítico que ostenta os dedos pecos,
cansados de apalpar o inatingido espaço.
Luzes, que tombam ébrias dos portais dos becos
ao ermo asfalto - ao cônscio asfalto onde não passo -,
incluem-me. Com elas vivo em múmias de ecos...
Ventos em túneis, desgrenhando um luxo baço,
arrastam-se na fúria de quem busca a morte.
Molas de sempre o mesmo impelem-me e eu caio
no quotidiano. Deus vê tudo: Cá ando à sorte,
aos encontrões a tudo! Há bálsamos no enjoo
em que me extingo; há indecisões de raio
ao longo do meu ser: Sem rumo, parto e voo..
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Ateu- Francisco Arcos
........................... E, sendo ateu da vinda,
proíbo a ida, agarro e mordo sons ausentes.
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O Périplo e o enjoo - Francisco Arcos
A noite é igual. A fome é outra.
A memória das plenitudes
ficou na bosta das sete vacas gordas
que subiram ao céu ( fartas e mansas )
e lá ficaram estrelas.
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É tudo ao luar como um noivado de aves - Francisco Arcos
É tudo ao luar como um noivado de aves,
é tudo ao luar num porto sem marés:
Betumo cascos pendurado no convés,
calafate que sou das minhas naves.
Por dentro alguém, sem braços e sem pés,
a ânsia dos meus sonhos vãos e graves,
anda tingindo de vermelho traves,
suspensa do pescoço em cordas, através.
As ondas furtam-me pedaços de obra,
numa serena e astral cleptomanobra,
que vejo e finjo que não vejo. A ânsia
é que não vê e pinta sempre, pinta...
Enquanto a água, sôfrega e faminta,
reduz os barcos à nudez da infância.
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No cais as ondas agrilhoam naves surtas. - Francisco Arcos
No cais as ondas agrilhoam naves surtas.
Equilibrando-me em longos mastros tortos,
revivo dramas, sonho muros doutros portos
onde há silêncio, onde há greves, onde há lutas.
Marés - esforços de memória. Estudo abortos.
Jangadas sem ninguém. Ondas cobardes, curtas.
Pedras lavadas de paredes nunca enxutas
carpindo sons de violoncelos quase mortos.
Ter a pachorra dos navios ancorados!
Fosse eu inexpugnável de qualquer dos lados!
Pensar em Deus, rolando num convés, que bom!
Ver-me ao espelho de qualquer remo encharcado
e rir de mim ao ver-me nele disformado!
Ser âncora ignorando o rumo, o fim - que bom!
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Torturas de aves em pedaços de tristeza - Francisco Arcos
Torturas de aves em pedaços de tristeza,
ao Deus-dará na longa cisma das amarras:
Ao longe, cega e surda-muda, uma princesa
tacteia sons pelos vitrais e enfeita jarras.
Alucinei-me em fuga. O cais deserto enfeza
o meu já magro sonho. As ondas crispam garras
e cravam-nas na rocha e a rocha fica ilesa
entre escombros de espuma e gritos de fanfarras.
Soluçam mastros, cujas velas esfarrapo
na fobia do branco. O mar é lúcido. Urge
ouvir o mar, quando no mar a vida é um trapo
de roupa humana, uma denúncia de naufrágio.
Meu ser agora é alguém que espero e que não surge.
Isto que sinto herdei do mar ou é contágio?
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Os montes nimbam-se de essências inodoras - Francisco Arcos
Os montes nimbam-se de essências inodoras;
o azul insurge-se num céu de espessa bruma:
E permaneço em xis, alheio ao som das horas
que vêm das grimpas do silêncio, uma por uma...
Intercalaram-me aspas férreas e sonoras,
fulgi instantes de loucura em véus de espuma:
Embarco em sons e parto. Alma, por que não choras?
( Por mim que vou buscar-te além, sem fé alguma? )
E sobre o mar os sons, numa preguiça hedionda,
deslizam marulhando e crispam comas de onda.
Neles lá vou. Esqueço tudo. Adeus! Viajo...
Herói apátrida, ainda vivo nas canções
das mães que lavam bibes sujos com rasgões !
E sou o mesmo de ontem - só mudei de trajo.
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Não percas teu olhar na sombra escura - Francisco Arcos
Não percas teu olhar na sombra escura
por onde erra sem norte o pensamento.
Deixa-o perder sem luz no esquecimento!
( Talvez no escuro apalpe uma ventura).
Ah, não soltes sequer um só lamento
desses teus lábios donde a dor sai pura!
Deixa-o perder, ceguinho, na amargura!
Deixa-o cantar, desafiando o vento!
Deixa-o fugir de nós, órfão de luar!
Não envolvas na luz do teu olhar
quem já , na sombra, há muito se envolveu!
Deixá-lo naufragar na travessia,
sem que possa bradar numa agonia:
- É noite e vejo tudo! Onde estou eu?
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Braços mirrados de abraçar distâncias - Francisco Arcos
Braços mirrados de abraçar distâncias. Pongos
quietos nas margens, sob as folhas dos arbustos,
num rio de África. E oiço Deus e estranho os longos
ramos das árvores torcidos como sustos.
No verde espesso, monossílabos, ditongos
de dor extensa... Há lábios gélidos de bustos
flutuando em charcos, como a ouvir distantes gongos
no além das coisas; e, nos chãos vetustos
do bosque espiritual, as cobras pensativas
rebolam-se no pó saudosa, lentamente...
Ideias cegas, amarradas perlo tronco
às grandes árvores ( medonhas e altivas ),
lançam canções de tédio ao ar doente.
E o céu, cor de aço, é um formidável ronco.
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Este meu crer - Francisco Arcos
Este meu crer com fé na espuma é senso
ou é loucura? Ignoro nuvens. Morre
a cisma fútil de guindar-me à torre.
onde meus olhos são farol do imenso.
Mais misantropo do que nunca escorre,
dos lábios do silêncio e por extenso,
um deus de espuma. Adoro-o e penso.
E o meu espasmo é efémero e discorre...
Meu Deus, que o mar de espuma me salpique!
Meu árduo anseio é um confundir de ocasos.
( Melancolia em naus de preto - as velas,
blasfémias a negar-te ) - Fique
como lona molhada a alma e rasos
fiquem meus olhos de água, sons e estrelas!
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O movimento enviuvou da cor - Francisco Arcos
O movimento enviuvou da cor. Ladra
inconsciente, a lua esgueira-se entre as comas
dos choupos, arrastando as copiosas somas
de sonhos que escondi. A minha ânsia ladra
e gane, e uiva, e fica presa à estranha goma
que é o luar no chão. A dor vidrada enquadra
esta emoção de angústia e vejo surta a esquadra
dos meus desejos na baía dos aromas.
Frustrou-se a cor no acto. O vento galga e abre
grutas de enleio, onde assimilo estrelas
e firo sombras com o olhar curvo de sabre.
A lua esgueira-se entre as frondes ( que são glosas
dum enfadonho mote ); e a alma, içando as velas
do galeão-mor, comete inútil mar de rosas.
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Vela de dois retalhos - Francisco Arcos
Vela de dois retalhos: Morte e vida. A emenda
é a alma, o meu desvio, o louco intento, o rumo
que estrelas pálidas me indicam. Mares de fumo
numa ressaca eterna. A praia. A minha tenda,
onde dormi renúncias que hoje já não durmo.
Seixos que me eram oiro ( o meu passado é lenda ).
Luar ao qual me aconcheguei. Espumas - renda
que amarfanhei nas mãos, de tudo espremo sumo
que desperdiço - perdulário de emoções,
que eu quisera integrais, mas que foram esquivas.
Enlouqueci ao leme e entendo as ondas: Loucos
num intercâmbio espiritual. Faço rasgões
na vela dupla do meu barco. - Ó marés vivas,
que me dizeis do cais e dos guindastes roucos?
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Em penhas brutas e anciãs suspendo ais - Francisco Arcos
Em penhas brutas e anciãs suspendo ais
que arranco às coisas pela noite dentro. A boca
da minha amada é um som num plano, é sombra louca
num vale ardente - o amor é íngreme demais
para que possa amá-la. Esqueço-a. É cheia e oca
a noite hermética onde vivo em ânsia o mais
que se me escapa. Inquirem-me: - Onde vais?
Respondo, sem saber: - Vou acostar à doca
onde se quebram meus soluços... ( E desfraldo
o meu velame e sigo, a rir, rumos nocturnos,
numa aflição calada - esta aflição de caldo
a fermentar num fundo ignoto de tigela...)
Ao longo do convés, silencioso, em coturnos,
a passos frouxos meço o meu cismar que gela.
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Clarões de forja acesa - Francisco Arcos
Clarões de forja acesa em muros de denúncia
pintam contornos lúcidos de sombra, ogivas
de Corpus Christi e arcos de ponte onde a renúncia
hesita, imóvel, ante as três alternativas.
O longe fala, com defeitos na pronúncia,
dialectos bárbaros de línguas negras vivas:
Oiço-lhe a voz, ao longo das paredes, núncia
de tédios sobre o mar em naus contemplativas.
Pela diafaneidade emigro e torço o xaile
duma saudade velha que me tem ao colo...
Sem saber como, caio e rolo no convés
onde se estira a chusma estúpida e boçal
dos que comigo vão nostalgiar-se ao polo:
( Clarões de forja acesa inquirem-me: - Quem és?)
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Amaino as velas - Francisco Arcos
Amaino as velas com ciúmes do luar
e vou da proa ver, de bruços, longes praias
que não esqueci. Relembro-as, nítidas, a olhar
países de ânsia diluídos e sem raias.
Soluçam ermos na extensão do meu olhar:
Vejo-me príncipe escutando as velhas aias
que lhe falam de espuma, e de ondas, e de mar...
E enrolado de medo, escondo-me nas saias,
porque a princesa, que ele amou, cosia redes
debaixo da varanda de seus paços fúteis
e um dia viu-a despenhar-se, das paredes
do cais, ao mar, à espuma, às ondas, e morrer
entre salsugem e montões de sons inúteis...
( Vacilo, ainda, entre ser príncipe e não ser ).
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Caem muros no som - Francisco Arcos
Caem muros no som das águas mortas,
tocadas pela sombra - de quais velas?
Ah, se meu grito, que abre e fecha portas
de antigos templos, apagasse estrelas!
Caem muros, que há luzes amarelas
na noite onde não ousam voar gaivotas
e se frustram no rumo as paralelas
que saem dos meus olhos ( por quais rotas? )
A escuridão no mar! Convés, barricas
ocas na estranha percepção dos olhos
empalados nos mastros, e relíquias
fechadas em baús, donde a ânsia escorre...
Caem muros de som. Embora. Escolhos
submersos são mais belos que uma torre.
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Inevitável como a erva e o musgo - Francisco Arcos
Inevitável como a erva e o musgo às portas
de um lar abandonado, cresce em mim o tédio.
Este sentir cabal de longitudes mortas;
o extenso ao longo dos meus nervos; este assédio
do que não cabe fora e a alma não comporta,
reduz-me a um fulcro, a qualquer coisa de intermédio.
Por isso, o meu olhar - proa que as águas corta -
esbarra em tudo na cegueira sem remédio.
Rota calada, passam bandos de cegonhas...
E as minhas mãos falhadas a rasgarem fronhas
de leitos de indiferença e de cansaço hediondo.
De lés a lés ( talvez de um para outro lado ),
a escutar sons nados e crus, bem perfilado,
sem saber porque velo e porque rondo...
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Abolroo comigo a cada instante - Francisco Arcos
Abalroo comigo a cada instante.
Meu Deus, que vento! A mão já treme,
ciosa das ondas, presa ao tosco leme
numa paralisia torturante.
Que a névoa os nervos frouxos me quebrante
e a água inunde o meu olhar estreme,
já que não posso ir mais adiante
daquilo que é comigo - um som que freme!
Corpos de virgens, que o luar viola,
na superfície da água bóiam brancos
( cadáveres que o mar jamais arrola ).
Abalroado, partido, eis-me difuso
na solidão do ser. E, nos barrancos
da minha angústia, há mil degraus sem uso.
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Da tempestade só ficou o ritmo - Francisco Arcos
Da tempestade só ficou o ritmo
e eu guardei-o em mim.
E os pássaros mortos
levantaram-se em bando...
E só esses deixaram de existir comigo
porque emigraram do tempo e eu fiquei.
( Eu e o ritmo )
- Então fui dar cambalhotas na erva molhada.
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Pensar é transformar-se - Francisco Arcos
Pensar é transformar-se a gente em ave
livre dum mundo onde tudo é medonho:
Ó alma, anda embarcar na frágil nave
que em breve me transporta ao mar do sonho!
Ao mar que diz, com voz serena e grave,
versos iguais na essência aos que componho!
Anda sonhar uma ilusão suave!
Anda comigo e canta enquanto sonho!
E se acaso um tufão, mordendo as velas,
no-las rasgar em véus para as estrelas,
não me acordes da paz, aguarda, espera!
Que eu, a sonhar, verei as rudes vagas
rojarem-me sem dó de encontro às fragas
e arrolarem-me às praias do que eu era...
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Canso-me ao longo das arestas - Francisco Arcos
Canso-me ao longo das arestas onde corro
as amplitudes desgrenhadas das figuras
que desconheço ao poente, em sons, pelas alturas:
Quando meu sangue livre, enfim, manar em jorro
como blasfémia sobre mãos de jóvens puras,
cansado de roçar-me em formas, então morro
mais calmo do que um lago e triste como o forro
dum manto real secando ao luar prantos e agruras...
Meu ser é um réptil de arestas, que se arrasta
ao longo delas, num estado de incerteza.
E o meu olhar descreve trajectórias loucas
do alto dos vértices, fitando um voo que se afasta
do rumo natural. A alma é a ave ilesa -
- a última de um bando alegre de asas roucas...
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Grutas que povoei - Francisco Arcos
Grutas, que povoei com o som das ondas bravas,
em que distantes litorais vos oiço agora?
Será porque meus nervos, hoje, são aldravas
em portões de jardim onde o silêncio mora?
Búzio vazio é búzio morto. As noites, cavas...
E eu, pés fincados no areal - esforço de escora-
sustendo-me e sustendo ideias e palavras,
meus e seus ímpetos de fuga, barra fora...
Babugem de sargaço em âncoras torcidas,
minha ânsia ferrugenta, de heroísmos frustrados,
procura na água, entre as ninfas suicidas,
aquela cujo corpo, atado a sons e algas,
servirá de vitral nos templos violados
onde se bebe a eternidade às malgas.
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O Diabo toca flauta num campo de lírios - Francisco Arcos
O Diabo toca flauta num campo de lírios
e o pacto nervos-alma é denunciado nesse instante..
Todas as coisas, especialmente as flores, têm o ar de quem chega
e ninguém as espera.
Por isso, há óvulos dependurados em todas as árvores
desesperando que os frustrem ou fecundem,
enquanto as mãos dos poetas se entregam como fêmeas
ao insaciável desejo de alma dos objectos inertes.
- Mas, afinal, sentir as coisas é adiar a sua posse,
não é, senhor Diabo, encantador de serpentes?
Adeus, roçar lascivo do devir,
que exacerbas até ao transe
a fome secular com que roemos as coisas!
Adeus, aves felizes, que saturastes de voos inúteis todo o espaço
possível!
Adeus, adeus, barcos sexuados e expectantes,
que tendes as proas varadas na memória das viagens
através da solidão que separa as estrelas entre si!
( Oh, este nosso morrer de morte a bordo! )
- Deixai-me simplesmente que dissipe esta lírica e herdada
sensação de baía do ponto de vista do mar.
O que se ama, isso ( di-lo a música ) é o nosso próprio limite.
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Nas margens húmidas - Francisco Arcos
Nas margens húmidas, pensando, há quilhas mortas
de barcos velhos que ali estão, de bruços,
lembrando o tempo em que ao sabor dos meus soluços
o mar libidinoso lhes mordia as formas.
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Regresso à Terra e à infância - Francisco Arcos
Dormito acasos que amordaço em sonos gagos
de ânsia verbal. E acordo, lívido, na praia,
feito poveira de cabeça sob a saia,
lhando ao longe o mar entregue a espuma e a afagos.
Fui pelo mar além. Fui só, numa catraia.
Alongo em sonho os olhos frios e aziagos
e abandono-os, sem dó, a cósmicos estragos,
nos braços da distância - infanticida e aia.
de sonhos exilados, órfãos de eco e sombra.
E durmo acasos na gaguez oculta do ar.
E rasgo crepes na indução que fere e assombra...
Filei-me e já não mexo; extático, não fujo...
Expiram comas negras sobre a cor do mar...
Ninguém me vê no cais. Sou um menino sujo.
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Jardins desertos do meu paço - Francisco Arcos
Jardins desertos do meu paço abandonado:
Pelas ruas de saibro arrasto os panos rotos
dos reposteiros de veludo e, a meu lado,
a minha sombra recortada a gumes botos.
Cantava e emudeci. Tornei-me desalmado
ao ver rachada a meio a japoneira. E o lótus,
num vaso de cristal, achei-o num estado
de murcho e de saudoso... e os lírios, como fotos,
mudos, distantes... Só as cores eram as mesmas
e os mesmos os meus sonhos nas folhagens...
Nos lagos musgos, fetos, líquenes, serpentes...
E nas escadas ( todas mármore ) só lesmas
sobem e descem... - Que é das aias e dos pajens?
E a harpa, onde mordia o luar com os meus dentes?
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Há uma fraude na paisagem - Francisco Arcos
Há uma fraude na paisagem: A luz que a ilumina é da véspera!
E o estafeta, dando por isso, pára de repente
e, ante o pasmo de córregos e árvores,
atira fora o testemunho inútil
e morre afogado em desespero.
............................................................................................
É então que surge um anjo resplandecente de luz
( daquela mesma luz que antes faltava à paisagem),
e arrebata consigo o testemunho,
ainda quente,
das mãos, agora frias,
do estafeta que fica, inteiro mas bem morto,
a apodrecer nas cores do Arco da Aliança.
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A jarra de cristal - Francisco Arcos
A jarra de cristal com flores autênticas
na velha sala doméstica, e eis cavado o abismo
onde o salto é possível - a menos que me surja a plena posse
das botas de Van Gogh
( as velhas botas com raízes no chão e concepções lá dentro ).
Agora, que eu brindava
pelo segredo morto, que me foi soprado
através de um profundo céu inconfidente,
surge-me a jarra, com a sua inocência flagrante,
vazando-me na taça a água
onde as flores, sequiosas de jardim,
bebem a sua efémera verdade.
Suspendo o brinde, tornado inactual
por essa água onde o segredo renasceu de súbito
em toda a sua terrível coerência.
Risos oferecem-se-me em poltrona para que me sente.
( São dos convivas,
libertos já do pavor da quase revelação ).
Resta beber a água e nascer flor
( autêntica, na jarra ).
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Folhas que amareleço em mim - Francisco Arcos
Folhas que amareleço em mim
( dentro e fora de mim, outonal ), serenas folhas amachucadas na
distância...
Vento gerado nas ruínas dos seios das estátuas partidas,
parido pelos olhos vazios das estátuas maciças...
Meus deuses inclinados e oscilantes
nos pedestais cujo abandono moro solitariamente...
Folhas, Vento, Deuses!
Vinde comigo e desvendemos estas noites insolúveis de gritos recalcados
e de vidros moídos.
Nos lagos monges ( Deuses, Vento, Folhas ), nos lagos monges,
na beatitude dos lagos monges,
amnésias da forma, poças de tempo,
mãos ungidas de solidão
agitando as águas da eternidade nos lagos monges que cheiram a santos.
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A sombra de torre invisível - Francisco Arcos
A sombra da torre invisível
estender-se-á,
alheia a tudo, no plano inviolado do silêncio;
e há-de atingir as superfícies dos lagos e a extensão limitada das coisas,
sôfrega de sons,
faminta de cheiros,
melada de sensações ultrapassadas.
Neva luar nos ramos das árvores e na sombra da torre.
Folhas, Vento, Deuses,
vinde comigo rolar em vertentes de sonho, a anularmo-nos,
na continuidade do que perdura!
Folhas, que o vento me trouxe,
não sei através de que mares angustiantes,
adormecem na alma - no amarelo lívido da alma.
Presenças distantes, fragmentadas, na vinda do Vento,
arribam a praias desertas, ébrias da espuma das ondas que se babam
de prazer.
Tudo isto pressinto
como se tudo isto fosse, nos domínios dos meus nervos frustrados,
pancadas em zinco ou unhas angustiadas raspando ferrugem
nos portões inexpugnáveis
dos arquivos da minha genealogia sem princípio.
Torturas ovais de que a alma é envolvente,
Folhas, que me lembrais pretéritos futuros,
quisera desgrenhar-vos,
rasgar-vos no presente impassível que me arranca assomos de energia
esbanjada, depois, em emoções inúteis, encravadas no silêncio da tortura
e suspensas nas traves da torre aonde habito virtualidades de sons.
Vozes do que ignoro,
Folhas, que o Vento me trouxe,
dormir que é quase um anular o tempo,
um resvés,
um desencontro, um sexo estéril, uma voz no vácuo...
Folhas, trazei-me ( o quê ? ). Trazei-me. Conduzi-me junto a mim.
Trazei-me saudades dos vales desabitados
e pedaços poliédricos de espaço vazio.
Folhas, Vento, Deuses,
vamos brincar às escondidas nos jardins do meu palácio em ruínas:
- Ficas tu, fico eu, fico, não fico, ficas...
( Eu quero ser a fugir)
- Ficas tu, fico eu, fico, não fico, ficas...
( Eu quero ser a fugir)
- Ficas tu, fico eu, fico, não fico, ficas...
- Quem fica é o Vento!
- Fujamos, Folhas e Deuses!
- Tu, vais para ali ( As Folhas foram esconder-se
nos ramos das árvores de folhas perpétuas)
- E tu, para acolá ( Os Deuses foram esconder-se atrás das estátuas
dos deuses que não caíram)
E eu ( falo comigo mesmo ), não sei onde me esconda.
E o Vento já contou até trinta.
E o Vento já procura os fugitivos.
E eu não sei onde me esconda
( e quero ser a fugir).
Não posso esconder-me atrás do que fui...
e a solidão é transparente
( a solidão é transparente,
a solidão é transparente... ).
Se a solidão fosse opaca! /...
- F I C A S T U !!!
Os Deuses e as Folhas gargalharam ignóbeis, incompreensivelmente...
Fico eu!
Eu que queria ser sempre a fugir!
Eu, atrás do Vento, das Folhas e dos Deuses ?
Prefiro migar os meus sonhos
e deitá-los aos peixes do lago.
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É um menino impossível o Chiquinho - Francisco Arcos
Ele vendou os olhos a todos os barcos,
amarrou latas à cauda do Sete-Estrelo,
abriu, de par em par, em plena Primavera,
as gaiolas das folhas
que fugiram em revoada, num Outono precoce.
Depois ungiu-se com a tristeza das estátuas perfeitas
e fez xixi por ele abaixo.
Compraz-se agora em açular os ventos contra as velas rotas
e a conspurcar, com seu riso de criança,
o silêncio que é a virgindade material das flores.
Mas nem o puxarem-lhe as orelhas
nem o flagelarem-lhe as nalgas adianta.
Seria preciso ( e ele bem no sabe )
que lhe comprassem - a troco mesmo de dez reis de desespero
toda a imensa pureza que lhe magoa a alma.
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Ferido, morro cisne entre os juncais dum lago - Francisco Arcos
Ferido, morro cisne entre os juncais dum lago..
Atroo os ares com a voz que se engalfinha
com as estrelas, na mudez febril do vago
cismar que se projecta, aquém, em simples linha.
De quando em vez sacudo as asas curtas. Trago
em longos haustos água e lodo. E essa doidinha
que é a lua reflectida ( o sofisma do lago ),
a olhar-me, a rir-se, a desfazer-se, num afago...
Foi bom nadar entre as estrelas. silencioso ?
Foi bom abrir caminho entre as folhas caídas
num lago ? - Sim. Por isso, agonizando em gozo,
agora sinto que sou música e sou paz.
( A alma indiferente ao sangue das feridas
ficou ao colo duma árvore, cá atrás... )
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O morto tem ainda o hoje atravessado na garganta - Francisco Arcos
O morto tem ainda o hoje atravessado na garganta
e nos dedos gorados os nenúfares que sobreviveram a ontem
e aos cisnes degolados ( com o gume dos risos inocentes ),
e aos barcos afogados ( com uma corda atada em volta de ),
e aos peixes envenenados ( com detritos de tempo ),
no lago do jardim que Deus destina às travessuras dos anjos.
Ele já pertence plenamente às coisas,
entrou mesmo no jogo do sério em que elas se entretêm
umas com as outras;
e, no entanto, ou talvez até por isso,
tem um ar de oficial de diligências
que tivesse no bolso um mandado de penhora contra o Universo
devidamente assinado por quem de direito.
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Bastam as mãos inábeis dum menino - Francisco Arcos
Bastam as mãos inábeis dum menino
e o objecto revela-se despido
da sua utilidade inconveniente.
Mas não basta à imperícia do menino
o que nas coisas joga com ele às escondidas.
Por isso cedo as deita fora
como se lhes tivesse esvaziado o suco.
Tomemos nas nossas mãos o que as mãos dos meninos deitam fora:
Para que o voo do pássaro
não apodreça
com o corpo do pássaro
é necessário que outros o retomem nas suas asas.
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O velho domador de objectos - Francisco Arcos
O velho domador de objectos
jaz morto sob as patas da mesa rebelde.
O seu chicote é inútil,
o seu revólver, de barro.
As cadeiras espantam-se imóveis nos seus plintos
e o momento prolonga-se na jaula
sem que seja maior a eternidade.
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Voo de âncoras - Francisco Arcos
Alguém castrou os barcos
para os fazer eunucos das estrelas.
E enquanto o sémen frustrado dos marujos,
no sórdido silêncio dos porões,
foi humo que fez dos mastros árvores
e das bandeiras pássaros em Março;
dos cordames, baloiços com crianças incluídas
e dos navios pátrias sem heróis,
as âncoras libertas levantaram voo.
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Paisagem com um barco - Francisco Arcos
Quando o tempo ergue margens em redor da nossa divindade
e a alma deixa de ser água e fica céu,
pega num pouco do azul que sobra às aves vivas
e a tua mão será inesperado barco,
varado num outono do absurdo bosque da memória,
de cuja proa os pássaros já mortos
retomarão o voo interrompido.
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Anúncio para uma Ode - Francisco Arcos
No amanhã tudo cabe,
inclusivamente o que sobrou de hoje
e o que deixamos ontem de fazer.
Não penseis, pois, que é alucinação
quando me virdes na penumbra dum vestíbulo
a pendurar a cabeça no cabide
e a mastigar o feltro do chapéu.
É apenas uma ode a quatro dimensões.
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Flor beatificada - Francisco Arcos
Houve uma flor de súbito cortada
que se deitou a afogar na minha alma.
Flutua morta sobre as sensações.
O epitáfio é o céu
e diz, além do mais,
que o outro mundo dessa flor sou eu.
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Carta deitada ao mar numa garrafa - Francisco Arcos
No primeiro patamar das escadas do tempo, majestosas e sujas,
eis-me dobrado sobre o corrimão das esperas inúteis,
como se estivesse enjoado na amurada de um barco.
Ninguém de ti me traz notícias a não ser a memória
que tenta aproximar-te de mim,
obstinadamente, mas sem êxito.
Há muito já murcharam os gladíolos
com que enfeitei o átrio do nosso reencontro
( e bem sabes que somente por ti sacrificaria flores );
há milénios que o sol é a única porta aberta entre nós dois
e a lua o nu, perfeita e ignobilmente esculpido, que decora
a alameda principal dos frondosos jardins que nos separam.
Mas somente a memória me traz notícias tuas
... /
e tenta aproximar-te de mim, dando-te as mãos,
sem que possais, no entanto, entrelaçar os dedos
que ao tocarem-se imergem no imenso pasmo do Cosmos
e se deixam nele diluir.
Restam apenas os versos concebidos,
à pressa e a medo, atrás de esconsas portas,
abertas para a realidade absurda,
e onde são tão possíveis a vida como a morte,
os beijos como os partos,
a graça como o grotesco,
mas onde tudo não deixa, afinal, de ter beleza,
incluindo o meu vómito de desespero ao cimo das escadas
em que fico a esperar-te
( sem saber que morreste )
e a enxotar moscas das comissuras dos lábios.
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Memória compartilhada - Francisco Arcos
Fui eu, sim, que entornei o perfume que continhas
( inconscientemente contido ) em tuas mãos
onde os meus dias amanhecem outros.
Derramei-o depois sobre estas folhas de Outubro,
só porque cheiravam já a tempo decomposto
e ainda era muito cedo para os funerais.
Havia flores, decerto, mas já murchas;
havia incenso,
mas que já tinha embebedado deuses.
E a menos que as aves nos ungissem com as asas húmidas de céu,
a quem - senão a ti e às tuas mãos tão pródigas de aromas -
iria recorrer para embalsamar na alma
estes restos mortais de tempo falecido?
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Câmara ardente - Francisco Arcos
Quando a euforia do festim culminou em libélulas,
deserdado e famélico, apesar das estrelas e do resto,
os deuses vieram farejar-me os dedos.
As palavras não foram então mais do que taças vazias
contendo apenas o nada da sua própria essência.
Em jarras de Alcobaça, compunha a Morte rosas descompostas,
num arranjo em que dedos de mulher foram o ornato decisivo.
Todos sentimos que lá fora estava a mais o luar;
ninguém o disse, porém, porque sabíamos
que somente o silêncio explica o perfume e as pétalas das flores.
Na verdade, quando tal ocorre ao pensamento,
bem pouco ou nada fica que dizer da música.
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