Encontrei o Andarilho, pela primeira vez, no pátio que serve
de poço de ventilação entre os edifícios de escritório. Estava sentado
numa pilha de caixotes, e, desde então, habituei-me a levar-lhe, todos
os dias, uma refeição. Enquanto ele come, sem pronunciar palavra,
nossos olhares se cruzam e fico sempre sobressaltado ao ver que os
olhos brilham alegremente como se estivesse guardando uma alma muito
jovem. Mas, ele é velho.
Sinto pena de seu traje esfarrapado, quase sempre úmido, os profundos
vincos que descem pela fronte até o pescoço, o maxilar desmesuradamente
inchado e salpicado de minúsculas crateras. Os pêlos loiros que lhe
crescem pelo rosto, seu desordenado cabelo, o queixo forte e o semblante
vermelho dão-lhe uma aparência estrangeira - possivelmente holandesa.
Numa destas manhãs, um homem amarrado foi trazido, e o oficial remeteu-o
imediatamente para a delegacia. Era o Andarilho que fora capturado.
Todos pareciam saber que haviam centenas de razões para que fosse
condenado, mas, na apresentação das provas, soube-se que era acusado
de estar carregando uma grande quantia em dinheiro. Ele obstinou-se
em afirmar que o dinheiro fora ganho honestamente. Ninguém acreditou,
mas, à falta de provas, só puderam encarcerá-lo por vadiagem.
Essa reclusão durou uma semana, durante a qual ele ficou na ignorância
absoluta do destino que lhe era reservado. Na tarde do sexto dia de
cárcere, foi solto, e tonto de alegria, voltou correndo para o poço
dos edifícios. À noite reunia em torno de si os caixotes e trambolhos
em forma de barricada e, tendo no silêncio seu vigia, quedava-se meio
sonolento como se estivesse à espera de alguma cilada.
- Um dia, apareceu pelas redondezas, outro andarilho. Vestia um blusão
de couro, e carregava sempre, debaixo do braço uma pasta larga de
papelão. Era um homem grande, forte: um desses tipos rudes e cabeludos
que produzem a sensação de serem indomáveis e perversos. Dizia-se
um desenhista moderno e todas suas forças e tempo eram dedicados ao
abstracionismo. Por este motivo, deixara de trabalhar e pusera-se
a viver de expedientes. Estava sempre a ponto de sufocar de sujeira
e mau cheiro, mas, sendo forte e saudável não se importava com isto.
Parecia preferir ser sufocado a dar-se ao trabalho de tomar um banho.
O fato é que nunca desenhava, e os desenhos que trazia debaixo do
braço, eram velhos, ensebados e esmaecidos. Estava sempre à procura
de modelos abstratos.
É impossível dizer como ele fez amizade com o Andarilho. Foram amigos
até o dia que o Desenhista se inteirou da pequena fortuna do outro.
Planejou rouba-lo, mas na noite que se levantou, empunhando uma faca,
o Andarilho desferiu-lhe um soco formidável. Em seguida, apoderando-se
de um saco vazio enfiou-o na cabeça do Desenhista, amarrou-o, pulou
a cerca e desapareceu. Os habitantes da redondeza nunca mais viram
qualquer dos dois.
Fazia dez dias que estava em Paris. A suave brisa, os exercícios,
e o sol haviam me restabelecido completamente das noites de malandragem,
e já principiava a achar aquela vida muito monótona, quando um fato
imprevisto aconteceu: encontrei o Andarilho. Sim, o Andarilho, aqui
em Paris. Achei-o sentado na porta de um hotel de terceira classe.
Ao passar por ele fui reconhecido. Parei e o convidei a tomar uma
bebida. Estava com a esperança de saber algo sobre ele, pois me sentia
terrivelmente curioso...
Depois do quarto copo ele me contou que veio da Romênia muito jovem.
A princípio perambulou sem emprego e sem dinheiro, mas logo arrumou
um lugar de aprendiz de sapateiro. Mais tarde montou oficina própria
e exerceu profissão. Os anos passaram, e aos poucos, cansado de bater
solas todos os dias, habituou-se a pensar na terra natal. Em seu coração
medrou o desejo de voltar à Romênia. Era sozinho. Economizou avaramente.
Um dia percebeu que havia envelhecido e não podia mais trabalhar.
Saiu pelas ruas, esmolando. Continuou guardando dinheiro até averiguar
que tinha o suficiente para a viagem e para viver em paz na sua aldeia.
Veio a Paris para embarcar.
Ele contou sua vida, sem pressa, pois não precisava mais esmolar.
Depois ficamos longo tempo em silêncio, e, como nada mais tínhamos
a dizer, partiu.
Meses depois encontrei o Andarilho numa rua movimentada. Nada nele
havia mudado, mas estendia a mão aos passantes, e isto me surpreendeu.
Acerquei-me dele, e indaguei porque não havia partido. Oh! Aquele
olhar morto. O brilho juvenil de seus olhos tinha desaparecido. Todas
as forças de sua vitalidade, até as mais fortes, desapareceram. Sua
voz era cava, e olhou-me demoradamente sem me reconhecer.
Contou o que lhe sucedeu com dificuldade, como tentando lembrar-se
de algo muito remoto: "Uma noite, quando passeava pelo cais, foi derrubado,
por um homem alto, forte, que vestia uma jaqueta plástica. Recebeu
violenta pancada na cabeça e desmaiou. Antes mesmo de despertar por
completo, percebeu que fora roubado. Nem se deu ao trabalho de procurar
o bolso."
Enfiei-lhe uma nota qualquer na mão, e por um beco misterioso vi desaparecer
o homem que não tinha o vigor do corpo, e que conservou durante muito
tempo, a juventude que o malandro roubou.
Nunca mais o encontrei, mas li nos jornais que ele tem ido à delegacia
em busca de notícias referentes à captura do larápio. Os investigadores
andam procurando o homem da jaqueta plástica. Jamais o encontrarão.
Tive o cuidado de enterrá-la num lugar que ninguém descobrirá.
Paris - Abril 1.968
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